São Paulo, domingo, 01 de abril de 2007

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Crítica/"Homo Sapiens 1900"

Documentário é uma lição de história sobre delírio eugenista

Filme de Cohen lembra experimentos que buscavam suposta melhoria genética

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Em "Arquitetura da Destruição", documentário de 1989, o sueco Peter Cohen mostrou de modo memorável as relações entre os ideais estéticos do nazismo e sua política de assassinato em massa.
Produzido nove anos depois, "Homo Sapiens 1900" mantém as qualidades do filme anterior: intensa pesquisa em arquivos cinematográficos, clareza expositiva, uso razoavelmente moderado da editorialização e, sobretudo, um senso profundo do horror e da patologia presentes na história do século 20.
Neste filme, não é a beleza, mas sim a ciência (ou o que se pretendia "científico" nos começos do século 20) que se alia ao delírio manipulatório e à pura desumanidade. Sob a bandeira da eugenia, médicos e biólogos de vários países se engajam numa suposta melhoria do padrão genético da humanidade.
Alguns propõem a esterilização forçada dos deficientes, dos feios, dos criminosos. Outros querem também a eugenia "positiva", defendendo a criação de um "haras humano", com reprodutores escolhidos.
Propostas desse tipo não foram exclusividade dos nazistas. A avançada Suécia foi a primeira a criar um Instituto de Biologia Racial, em 1922, e terminaria aprovando leis de eugenia que duraram mesmo depois da Segunda Guerra. A esterilização, muito civilizadamente, deveria ser voluntária.
Nos EUA, a primeira lei de esterilização forçada surgiu em 1907 (o filme não diz em que Estado) e foi adotada por mais de 20 unidades da Federação.
Ainda nos tempos do cinema mudo, um médico, o dr. Harry Haiselden, filmou "A Cegonha Negra", no qual se fazia um bebê defeituoso morrer de frio, em nome de um futuro saudável para todos.
Em outro precioso documento de época, vemos o ministro da Cultura de Lênin, Anatoly Lunatcharski, atuar num filme de ficção, salvando um cientista de seus cruéis adversários. Ajuda-o a provar as teses de Lamarck, segundo as quais os caracteres adquiridos são herdados pelos descendentes. A teoria, embora errada, era mais condizente com os ideais bolcheviques do que o determinismo genético.

Fraude
No campo oposto do debate biológico, um importante geneticista americano, Hermann Mueller, responsável pela descoberta de que os raios-X afetam os cromossomos, procura apoio de Stálin para seu projeto eugenista. O líder soviético acertou dessa vez, considerando a idéia reacionária. Mas preferiu promover a famosa fraude de Lyssenko, mandando fuzilar os que duvidavam dela.
Ciência e ideologia não cessam de trocar de lugar ao longo do filme, cujos longos black-outs e narração pesada não se coadunam com o óbvio ridículo de alguns de seus personagens, cuja real importância histórica não é dimensionada com exatidão. Sem ter a abrangência de "Arquitetura da Destruição", "Homo Sapiens 1900" vale ainda assim como uma lição de história (e de modéstia) para cientistas, legisladores e seres humanos em geral.


HOMO SAPIENS 1900
Direção:
Peter Cohen
Distribuidora: Versátil (R$ 37,50 em média)
Avaliação: bom


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