São Paulo, terça-feira, 01 de abril de 2008

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Crítica/"Senhora dos Afogados"

Antunes só não faz obra-prima por falta de um elenco à altura

Diretor realiza bela síntese entre elementos dos trabalhos anteriores, mas Lee Thalor é o único ator que se destaca

Velório na casa dos Drummond. Enquanto um piano triste inunda a casa, crianças brincam na penumbra. A primeira imagem da montagem de Antunes Filho para a mais maldita peça do maldito Nelson Rodrigues faz pressentir que estaremos diante de uma obra-prima.
Não é, infelizmente, e não por culpa do diretor. Depois de anos destilando técnicas para a tragédia grega, e uma montagem para pôr tudo de lado e reencontrar a brasilidade ("A Pedra do Reino"), com "Senhora dos Afogados" Antunes faz a síntese entre a carnavalização e o arquétipo.
Para isso, afina seu vocabulário como se tudo antes fosse um esboço do que vem agora. O grupo que evolui em bloco desde "Macunaíma" se torna o coro de vizinhos, malsão e cômico como um tropel de ratos. A dicção minuciosamente artificial desta vez não redunda a solenidade do texto, mas dá uma dimensão alucinatória aos diálogos aparentemente naturalistas. Mesmo Shakespeare se faz presente na cena do assassinato do Noivo, de economia exemplar, horror puro.
Sinal das grandes montagens, resumir o enredo seria dar uma impressão errada do espetáculo, que, plasmado em imagens-síntese, vai além do que possa ser descrito. Incestos, suicídios, assassinatos e mortos que voltam fazem parte do universo rodriguiano, mas talvez nunca com tanto despudor, tanta confiança em uma lógica própria. A luz elegantemente precisa de David de Brito e Robson Bessa, a trilha de Pedro Abdhul, cantada com segurança pelo elenco, e os figurinos de Rosângela Ribeiro assombram por muito tempo a memória do público.
Mas não é suficiente: ainda faltam atores para Antunes.
Todos cumprem à risca as requintadas marcações, aspirais para a morte que ronda; todos usam a voz gutural como uma máscara que afasta a anedota esvaziadora. Mas poucos criam a partir disso.
Assim, Valentina Lattuada, como D. Eduarda, reproduz com desenvoltura o padrão indicado, mantém uma beleza solene, mas se torna previsível muito rápido em seus efeitos. Fred Mesquita é muito romântico como Paulo, Eric Lenate muito comezinho como Noivo.
Angélica di Paula, como Moema, a secreta protagonista da tragédia, se sai melhor; falta-lhe porém uma maior explosão na catástrofe final.
Lee Thalor é aquele que faz entrever o que poderia ser um espetáculo de Antunes Filho se todos no palco tivessem a mesma genialidade que o encenador. Faz das marcas uma brincadeira e, com um dom inato para a pausa e a ironia, se mantém no limite entre a comédia e a tragédia. Ele traz o sombrio e assombrado patriarca Misael, logo em sua primeira aparição, com um riso sinistro que gela a platéia, clichê de melodrama que, distanciado pela técnica, volta de repente a ser eficaz.
Como cobrar Antunes por ter apenas um ator à sua altura?
Mestre, lapida cada ator em cena, com a mão pesada talvez de seu mestre Adolfo Celi, mas sem ceder ao psicologismo nem ao arbitrário. Exige alta erudição dos que estão em seu Centro de Pesquisa, para que possam compartilhar suas inquietações. Mas nada disso supre o que seja talvez uma deficiência de formação, ou de expectativa, dos que escolhem o duro ofício de ser ator. Antunes faz suas encenações para atores do futuro. Que seja alcançado por Lee Thalor é um ganho inestimável.


SENHORA DOS AFOGADOS
Quando:
sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h
Onde: Sesc Consolação - teatro Sesc Anchieta (rua dr. Vila Nova, 245, 0/xx/11/3234-4000)
Quanto: de R$ 5 a R$ 20
Avaliação: bom


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