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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Ensaio sobre a cegueira
Cegueira mental começa quando a distinção entre civilização e barbárie deixa de fazer sentido
EM SETEMBRO passado, o presidente do Irã visitou Nova
York. Bizarro, sobretudo para
quem deveria estar preso por suas
exortações genocidas? Nem por isso. O momento bizarro da visita
aconteceu na Universidade Columbia, uma vetusta casa por onde já
passaram Lionel Trilling ou Jacques
Barzun. Bons tempos, esses, em que
a universidade não era uma pocilga.
Em 2007, e perante a platéia erudita
do momento, Mahmoud Ahmadinejad, internacionalmente conhecido por sua sanidade mental, declarou que no Irã não havia "homossexuais". Toda a gente riu.
Toda, exceto o próprio Ahmadinejad. E com inteira razão. Não pretendo ser internado no manicômio
na companhia dele. Mas sou obrigado a concordar com o presidente.
Como é possível acreditar que o Irã
tem "homossexuais" dentro das
suas portas quando o regime tem sido exemplar a persegui-los, a torturá-los e a executá-los?
Os números não mentem: em
1979, uma data que será lembrada
na história da humanidade como
hoje recordamos a Revolução Russa
de 1917 ou a chegada de Hitler ao poder em 1933, o aiatolá Khomeini iniciava a sua "revolução islâmica". E,
em três décadas, o regime executava
4.000 "homossexuais", aplicando a
rigorosa (mas altamente discriminatória) lei penal iraniana sobre a
matéria.
Digo rigorosa mas discriminatória
porque a lei penal concede às donzelas uma benevolência que está interdita aos machos: a sodomia é punida
com a morte; mas o mesmo não
acontece com a homossexualidade
feminina. As senhoras recebem
"apenas" cem açoites nas três primeiras infrações lésbicas.
Só à quarta vez conhecem o fatal
destino dos homens. Quem disse
que não existem vantagens em pertencer ao "sexo fraco"?
Aliás, as vantagens não se ficam
pelo chicote. E não será exagero afirmar que, no Irã, só morre por homossexualismo quem quer.
Li em tempos, num artigo da jornalista portuguesa Alexandra Prado
Coelho, que o regime iraniano pode
condenar os homossexuais à morte.
Mas o regime não se opõe a operações cirúrgicas para mudança de sexo. Pelo contrário: o financiamento
estatal é bastante generoso para esse fim.
De acordo com os números oficiais, existem entre 15 a 20 mil transexuais no Irã. Mas os números
"clandestinos" multiplicam a cifra
por dez, o que transforma o Irã no
segundo país do mundo, logo a seguir à Tailândia, com o maior número de homossexuais que optaram
pelo bisturi para jogarem por outro
time. O presidente Ahmadinejad sabia do que falava. Homossexuais? É
tão difícil encontrar um no Irã como
encontrar o saci a pular no mato
brasileiro.
Mas alguns ainda pulam. Para sermos mais exatos, alguns pulam fora
e procuram salvação no corrupto
mundo ocidental.
Pior: de acordo com as notícias
dos últimos dias, existem casos em
que "homossexuais" islâmicos
abandonam a riqueza e a tolerância
das suas culturas locais, entregando-se de alma e coração a potências
opressores e imperialistas. Como a
Grã-Bretanha. Como Israel.
Na Grã-Bretanha, o governo de
Gordon Brown, depois de uma ridícula hesitação diplomática, decidiu
conceder asilo político a um homossexual iraniano de 19 anos.
Parece que o rapaz, de seu nome
Mehdi Kazemi, depois de assistir à
execução do namorado em Teerã,
achou por bem não ficar mais tempo
no país. Inexplicavelmente, há gente
que não gosta de balas. Ou de bisturis.
Mas o caso da semana veio de Israel, essa entidade maligna que continua a envenenar o Oriente Médio:
em decisão rara, Tel Aviv concedeu
visto de permanência para palestino
homossexual que vivia na Cisjordânia e se preparava para ser morto
pelos vizinhos. Segundo parece, os
palestinos não se limitam a jogar pedras contra os judeus; também praticam esse desporto contra os seus
próprios homossexuais.
Exatamente como o leitor médio
da imprensa ocidental média pratica o seu desporto favorito: abominar
as democracias liberais onde vive
pelo aplauso irracional a culturas retrógradas e até sinistras. As mesmas
culturas que o condenariam facilmente à morte caso o leitor tivesse
uma orientação sexual, ou religiosa,
ou política, que os fanáticos considerassem intolerável.
A cegueira física é um infortúnio,
sem dúvida. Mas a cegueira mental,
sobretudo quando voluntária, não
deixa de ser um infortúnio maior.
Ela começa no dia em que a distinção entre civilização e barbárie deixa de fazer sentido.
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