São Paulo, quarta-feira, 01 de abril de 2009

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MARCELO COELHO

Uma vitória do esquecimento


É assustador verificar que, tanto na esquerda quanto na direita, ninguém aprendeu nada


BOILESEN. HENNING Boilesen. Guarde esse nome. Foi um dinamarquês. É uma das maiores atrações do festival de documentários É Tudo Verdade, que vai até dia 5 de abril, com sessões grátis no Cinesesc, no CCBB e no Eldorado.
"Cidadão Boilesen" é um documentário de Chaim Litewski, investigando a vida de um alto executivo da Ultragás, que era amigo de torturadores durante a ditadura e que chegou a assistir, por prazer, a sessões de suplício comandadas pelo delegado Fleury.
Boilesen foi assassinado pela guerrilha de Lamarca. Na mesma alameda Casa Branca onde o guerrilheiro seria morto um tempo depois. O filho de Boilesen é entrevistado no filme. Simplesmente não consegue acreditar que o pai fosse um monstro anticomunista, cúmplice de torturadores. Para ele, o assassinato ainda carece de explicação.
Boilesen era um tipo amigável, festeiro, nada racista: terminou tendo um caso extraconjugal, a que administrou decentemente. O documentário abusa um pouco, por falta de material concreto, das fotografias oficiais do empresário dinamarquês. Alto, sorridente, nariz de boxeador, smoking impecável, ei-lo presente em solenidades da Fiesp durante os anos de chumbo.
Muitas pessoas entrevistadas pelo documentário atestam a simpatia de Boilesen pela Operação Bandeirante -a Oban-, aparato semiclandestino dedicado a matar e torturar suspeitos de "comunismo" no auge da ditadura. Segundo alguns relatos do filme, Boilesen não se limitava a financiar a Oban. Gostava de presenciar as sessões de tortura -e o filme recorre, a meu ver erradamente, a recriações ficcionais daquele horror todo.
Fico sem saber o que pensar de Boilesen. Cláudio Elisabetski, produtor cultural, refere-se ao "lado obscuro" do empresário, que pode ser mais ou menos intenso em cada um de nós. Menos do que o caso individual de Henning Boilesen, o que há de mais interessante no documentário são os depoimentos gravados por Chaim Litewski.
Ninguém sente a menor sombra de culpa. Jarbas Passarinho, Carlos Alberto Brilhante Ustra e outros partícipes da Oban falam friamente da chamada "guerra contra o terrorismo". Lamente-se, de resto, a falta de um depoimento do ex-ministro Delfim Netto, evidentemente um adepto da ditadura, e hoje hábil conselheiro do governo Lula. Torturava-se à vontade nos tempos de Boilesen. Poucos empresários tiveram a coragem de recusar doações à Oban: Antonio Ermírio de Moraes, José Mindlin.
Resta, desta história sinistra, o principal. A saber, aquilo que os personagens principais do drama aprenderam do processo. É assustador verificar que, na esquerda e na direita, ninguém aprendeu nada. O ex-governador Paulo Egídio Martins faz de modo tosco o elogio de Boilesen: "Era um utopista". Bela utopia, a de torturar opositores do regime.
Do lado da esquerda, não existe quem considere a morte de Boilensen um cruel assassinato a sangue frio. Mesmo um cristão -Hélio Bicudo- manifesta alguma leniência diante do atentado. Havia em tudo uma razão política, argumentam os homens que mataram Boilesen. Importava sinalizar aos demais empresários que qualquer apoio à tortura não passaria impune.
Valeu a pena? Certamente não. A política, creio eu, funciona em termos de valores e de interesses. Os mais altos valores -exigindo, por exemplo, punição exemplar- confrontam-se com interesses que dizem respeito, por exemplo, ao desenvolvimento da democracia. Tudo depende, é claro, da quantidade de poder que se atribui aos diversos participantes do jogo.
Matar os torturadores seria mais importante do que se aliar aos "moderados" do regime? O que se ganha, e o que se perde, no processo? Talvez estejamos superestimando o papel dos torturadores em todo o jogo. O documentário sobre Boilesen é uma etapa num caminho de sensibilização histórica. Não interessa tanto, a meu ver, julgar o personagem. Interessa saber o que cada um de nós faria em seu lugar.
Ou no lugar de seus assassinos. Havia belos argumentos para matar aquele sádico. Mas o militante que o mata se transformou num criminoso também. Nenhum dos entrevistados, de direita ou de esquerda, parece arrependido do que fez. A Lei da Anistia, na prática, funcionou para todo mundo. Eis uma vitória, temporária, tenho certeza, do esquecimento.

coelhofsp@uol.com.br


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