São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2010

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NINA HORTA

A eterna luta de classes


A empregada deslizava pela casa como uma índia varrendo quintal (a coisa que brasileiro mais gosta é varrer)


SEMPRE ME interessei muito por patrões/empregados, ou seria patrões versus empregados a eterna luta de classes? E existem muitos livros sobre o assunto. Não foi por falta deles que ainda tenho dificuldade para deslindar o relacionamento. Há alguns meses saiu um especial sobre as empregadas de Virginia Woolf, que passou a vida com o dilema ter ou não ter empregadas? Muito sensível, sofria na pele a presença e a ausência delas. Ah, não chamo empregada de secretária. Elas devem ter orgulho da profissão, trabalhar e ganhar bem, cozinheira, lavadeira, arrumadeira, motorista, qual o problema? É claro que poderia ter feito pesquisa em casa mesmo. Por todos esses anos já passaram centenas de mulheres pela minha vida, desde as que ficaram morando conosco 30 anos, cinco, 18 anos até as de uma semana ou um dia só. E nós pela vida delas.
Poderia tê-las classificado em mulheres que saíram direto da roça para a casa da cidade. A última, vinda do sertão, custei a perceber, falava outra língua. Ou melhor, substantivos que eu usava ela não sabia o que queriam dizer. E vice-versa. Então, calava. As palavras mais básicas, como pires, manteigueira, lichia (ah, aquela jaquinha?), água com gás, maionese, páprica, pudim, purê, ela ia armazenando para o esclarecimento final, no dia em que eu juntasse o objeto à palavra. Não nego que era inteligentíssima, vá você trabalhar na casa de um japonês que não fala português.
Nunca perdia as estribeiras (nem eu), quando me trazia de agrado uma cumbuca com farinha de beiju e uma batata-doce cozida. Deslizava como uma índia pela casa, varrendo quintal (a coisa que brasileiro mais gosta é varrer).
Tenho uma teoria que as casas de roça têm que ter terreiro batido, sem jardim, muito limpinho para que se enxerguem cobras. Sem cobras, a necessidade passou, mas ficou o costume. O que mais há a fazer numa casinha ascética, com chão de terra batida, a cama de couro de vaca, a mesa e o fogão? Varrer, rupe, rupe, chuiz, chuiz... e arear panela. Com as migrantes me acostumo, aprendo, ensino, e vamos levando.
Mas, aqui em São Paulo, as que mais detesto são as que, ao passarem por casas ricas, tomaram emprestado o status das patroas. Sabem nome de políticos, de celebridades, já deram de jantar ao ministro tal e qual, passaram a roupa da dona Gonzalez von Wichtig. Ficam arrepiadas ao ter de passar a camisola de cambraia velha, tão fresquinha, já puída, e o pijama de flanela xadrez de estimação da patroa nova. ("Este já deu o que tinha que dar, madame.")
Falta-lhes referências para qualificar pessoas, por ignorância mesmo, e por pouca informação classificam as visitas pelos carros. Odeiam tudo que você gosta e gostam de tudo que você odeia. Por um tempo, meus filhos tiveram aula de inglês com uma mulher genial. Mas era inglesa e, logo, fora dos padrões. Morava no Jardim América, seu quintal era o clube Harmonia. A certa altura herdou um castelo perto de Londres, sua casa de férias era um naco da Mata Atlântica e pilotava um fusca cuja porta junto à direção ela segurava enquanto dirigia. As empregadas não entendiam nada. Deviam servir um cafezinho a ela, ou ela deveria servir o cafezinho de tão "mendinga"? Chiiii.... Sei que o problema é meu, pois o que podem fazer? Como descobrir uma pessoa pelo que é, se elas não têm referências? São tão sem noção como as índias não aculturadas de quem gosto, mas implico com elas de ranger os dentes.
Bom, já falamos sobre a índia perdida e a esnobe sem causa. Falta a empregada perfeita demais, a tenho-saudade-da-bahia, a sabe-tudo, a estudante-de-direito, a não-te-esquecerei-jamais e outras. Não é para rir, eu sei, é de chorar. Voltamos.

ninahorta@uol.com.br


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