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"O TUDO E O NADA"
Livro revela humor melancólico do autor através de 101 crônicas publicadas na Ilustrada desde 1998
Cony confere consistência a gênero volátil
Antônio Gaudério - 30.mai.2000/Folha Imagem
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O escritor Carlos Heitor Cony, autor das crônicas de "O Tudo e o Nada", em frente à lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro |
CRISTÓVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Gênero fugaz por natureza, a
crônica é feita para ser esquecida. Como jornalismo, costuma se esgotar no esgotamento
mesmo do fato; como literatura,
tem em geral a ambição tranqüila
da orelha, a do livro e a do ouvido,
atenta discretamente às sugestões
do mundo. O impacto da crônica
está no seu tamanho -e há, parece, algo incompatível entre a crônica e o livro e a idéia de perenidade que este supõe. Sozinha, ela
brilha; em conjunto, quase sempre naufraga na redundância e no
cansaço de seus truques, assim visíveis um ao lado do outro.
Sustentar portanto uma coleção
de crônicas que fique em pé é tarefa de mestre -e é justamente
isso que encontramos em "O Tudo e o Nada", conjunto de 101 crônicas de Carlos Heitor Cony.
O caso de Cony é especial: desde
a publicação de "O Ventre", em
1958, no terreno da literatura, e da
retórica brilhante e virulenta dos
tempos de "O Ato e o Fato", sobre
a ditadura nascente do golpe de
64, na área do jornalismo, ele tem
sido um dos mais notáveis "escritores militantes" da cultura brasileira dos últimos 40 anos.
O livro é uma antologia não de
suas crônicas políticas diárias,
mas dos textos semanais mais
longos do caderno Ilustrada, publicados de janeiro de 1998 a janeiro de 2004. Livre do comentário político imediato, ele percorre
um amplo leque de temas sob
dois enfoques principais. Um deles é o do comentarista da cultura,
alguém que olha para o mundo
não como o "turista cultural, mas
como peregrino": "Fui a Roma
(...), a Jerusalém e a Atenas. Três
cidades que fundaram o Ocidente, que, de certa maneira, formaram aquilo que sou, penso ou deixo de pensar". Com um humor
melancólico, e sob o peso da formação clássica de um ex-seminarista que trouxe da juventude os
grandes temas e dilemas de sua
vida, Cony percorre os fatos do
mundo não atrás de sua grandeza,
mas de olho em suas pequenas e
universais misérias, sempre com
uma graça suave.
Do ridículo das revoluções brasileiras ao lugar-comum do cinema, da paixão pela Itália ao Grande Satã, a leitura de Cony leva-nos
pela mão com leveza e arte.
Mas um outro enfoque, ou
"narrador", transparece no conjunto: o próprio Cony. As crônicas, pela repetição das formas e
pela pouca distância que deixam
entre o autor e a palavra, acabam
por revelar traços do escritor em
camadas mais densas. Texto a
texto, vamos descobrindo que a
morte, por exemplo, é o seu grande tema -para onde quer que se
mova o olhar do cronista, é sempre o fim das coisas que nos dá
sentido. No seu mundo, toda alegria é acompanhada de sua sombra. Há uma culpa imemorial no
fato de estar vivo; viver é tolerar-se. Encerrando um texto sobre
Chaplin, Cony lembra-nos de que
"em algum lugar, em algum tempo, por algum motivo, cometemos um crime horrendo, de cuja
expiação somos impotentes".
Escrever é exercer a infelicidade:
"Foi tão bom esse tempo", diz ele
sobre o tempo feliz em que viveu
em Ipanema, "que deixei de escrever".
Há mergulhos literários surpreendentes nesse pessimismo.
"O pai, a mãe e os filhos", por
exemplo, é alguma estranha comunhão de Nelson Rodrigues
com Dalton Trevisan, realizando
um roteiro onírico de Kafka. Às
vezes, encontramos um Cony tentativamente lírico, como em "Receita da amante ideal" -o tema é
uma espécie de soneto da crônica
carioca, talvez o próprio autor
dissesse, como em outro momento recorda o fascínio de outrora
pelos sonetos-, mas mesmo ali,
parece, são nossas misérias que
valorizam a mulher amada. Nessa
face sombria do cronista que em
cada frase nos espreita está, quem
sabe, o seu segredo de dar a esse
gênero volátil uma inesperada
consistência.
Cristovão Tezza é escritor, autor, dentre outros, dos romances "Breve Espaço
entre Cor e Sombra" e "Uma Noite em
Curitiba" e do ensaio "Entre a Prosa e a
Poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo",
todos publicados pela editora Rocco
O Tudo e o Nada
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 49 (408 págs.)
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