São Paulo, sábado, 01 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O TUDO E O NADA"

Livro revela humor melancólico do autor através de 101 crônicas publicadas na Ilustrada desde 1998

Cony confere consistência a gênero volátil

Antônio Gaudério - 30.mai.2000/Folha Imagem
O escritor Carlos Heitor Cony, autor das crônicas de "O Tudo e o Nada", em frente à lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro


CRISTÓVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gênero fugaz por natureza, a crônica é feita para ser esquecida. Como jornalismo, costuma se esgotar no esgotamento mesmo do fato; como literatura, tem em geral a ambição tranqüila da orelha, a do livro e a do ouvido, atenta discretamente às sugestões do mundo. O impacto da crônica está no seu tamanho -e há, parece, algo incompatível entre a crônica e o livro e a idéia de perenidade que este supõe. Sozinha, ela brilha; em conjunto, quase sempre naufraga na redundância e no cansaço de seus truques, assim visíveis um ao lado do outro.
Sustentar portanto uma coleção de crônicas que fique em pé é tarefa de mestre -e é justamente isso que encontramos em "O Tudo e o Nada", conjunto de 101 crônicas de Carlos Heitor Cony.
O caso de Cony é especial: desde a publicação de "O Ventre", em 1958, no terreno da literatura, e da retórica brilhante e virulenta dos tempos de "O Ato e o Fato", sobre a ditadura nascente do golpe de 64, na área do jornalismo, ele tem sido um dos mais notáveis "escritores militantes" da cultura brasileira dos últimos 40 anos.
O livro é uma antologia não de suas crônicas políticas diárias, mas dos textos semanais mais longos do caderno Ilustrada, publicados de janeiro de 1998 a janeiro de 2004. Livre do comentário político imediato, ele percorre um amplo leque de temas sob dois enfoques principais. Um deles é o do comentarista da cultura, alguém que olha para o mundo não como o "turista cultural, mas como peregrino": "Fui a Roma (...), a Jerusalém e a Atenas. Três cidades que fundaram o Ocidente, que, de certa maneira, formaram aquilo que sou, penso ou deixo de pensar". Com um humor melancólico, e sob o peso da formação clássica de um ex-seminarista que trouxe da juventude os grandes temas e dilemas de sua vida, Cony percorre os fatos do mundo não atrás de sua grandeza, mas de olho em suas pequenas e universais misérias, sempre com uma graça suave.
Do ridículo das revoluções brasileiras ao lugar-comum do cinema, da paixão pela Itália ao Grande Satã, a leitura de Cony leva-nos pela mão com leveza e arte.
Mas um outro enfoque, ou "narrador", transparece no conjunto: o próprio Cony. As crônicas, pela repetição das formas e pela pouca distância que deixam entre o autor e a palavra, acabam por revelar traços do escritor em camadas mais densas. Texto a texto, vamos descobrindo que a morte, por exemplo, é o seu grande tema -para onde quer que se mova o olhar do cronista, é sempre o fim das coisas que nos dá sentido. No seu mundo, toda alegria é acompanhada de sua sombra. Há uma culpa imemorial no fato de estar vivo; viver é tolerar-se. Encerrando um texto sobre Chaplin, Cony lembra-nos de que "em algum lugar, em algum tempo, por algum motivo, cometemos um crime horrendo, de cuja expiação somos impotentes".
Escrever é exercer a infelicidade: "Foi tão bom esse tempo", diz ele sobre o tempo feliz em que viveu em Ipanema, "que deixei de escrever".
Há mergulhos literários surpreendentes nesse pessimismo. "O pai, a mãe e os filhos", por exemplo, é alguma estranha comunhão de Nelson Rodrigues com Dalton Trevisan, realizando um roteiro onírico de Kafka. Às vezes, encontramos um Cony tentativamente lírico, como em "Receita da amante ideal" -o tema é uma espécie de soneto da crônica carioca, talvez o próprio autor dissesse, como em outro momento recorda o fascínio de outrora pelos sonetos-, mas mesmo ali, parece, são nossas misérias que valorizam a mulher amada. Nessa face sombria do cronista que em cada frase nos espreita está, quem sabe, o seu segredo de dar a esse gênero volátil uma inesperada consistência.


Cristovão Tezza é escritor, autor, dentre outros, dos romances "Breve Espaço entre Cor e Sombra" e "Uma Noite em Curitiba" e do ensaio "Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo", todos publicados pela editora Rocco

O Tudo e o Nada
   
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 49 (408 págs.)


Texto Anterior: A magia do cinema: Escolhas de Roger Ebert revelam gosto do americano médio
Próximo Texto: Panorâmica - Teatro: Samir Yazbek tem peça inédita lida na segunda
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.