São Paulo, sábado, 01 de maio de 2004

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MÚSICA/CRÍTICA

A cantora Mônica Salmaso lança novo disco pela Biscoito Fino com repertório que vai do samba a Tom Zé

Quando tudo nos leva de volta para a voz

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Um dos instrumentos mais lindos do mundo é a voz de Mônica Salmaso. E ninguém toca a voz de Mônica Salmaso melhor do que Mônica Salmaso. Que ela não se contenta com suas virtudes naturais, mas usa o instrumento para realizar projetos do maior relevo para todos nós, nesse momento da nossa música, fica demonstrado mais uma vez em seu novo disco, "Iaiá".
É o quarto CD, depois de "Afro-Sambas" (1995), "Trampolim" (1998) e "Voadeira" (1999). O disco reúne canções de meia dezena de aventuras que Mônica vem realizando há dois anos na série "Ponto InComum" do Sesc Ipiranga e em outros projetos.
A natureza desses encontros define o caráter da cantora: para cada show, convidou artistas de ponta de acervos menos visitados da música popular. Foi assim com o novo samba e o novo choro do Rio -representados no disco pelas faixas de abertura, "Moro na Roça" (Xangô da Mangueira) e "Cabrochinha" (Maurício Carrilho/P. César Pinheiro), e pela última, fechando temática e musicalmente o ciclo, "Na Aldeia" (Sílvio Caldas)-, que ela canta acompanhada por Carrilho, Luciana Rabello e seus parceiros da Acari.
O disco também tem participação do pianista André Mehmari, reinventando com virtuosismo composições de Jair do Cavaquinho e Chico Buarque. O quinteto de clarinetes Sujeito a Guincho acompanha um samba cômico, "Cidade Lagoa", fazendo proezas de madrigalismo: quem quiser saber como se faz um pescoço de girafa ao clarinete pode consultar a faixa 8. O violonista Paulo Bellinati toca "Por Toda a Minha Vida" (Jobim/Vinícius) e faz o arranjo de "Assum Branco" (Zé Miguel Wisnik), traduzida da dicção musical nordestina para um registro de música negra mineira. Rodolfo Stroeter tocou baixo, produziu o disco e trouxe de lambuja uma toada instantaneamente clássica (em parceria com Joyce).
Instrumentista da Orquestra Popular de Câmara, Mônica convidou o pianista Benjamin Taubkin e colegas para "É Doce Morrer no Mar" (Caymmi), com direito a contrapontos bachianos, "Onde Ir" (Vanessa da Mata, liderando a ala dos novíssimos compositores) e "Menina Amanhã de Manhã" (Tom Zé). O arranjo dessa última a transforma numa peça de música de câmara, com episódios modulatórios, que vão do maracatu ao circo. Sem falar na sanfona de Toninho Ferragutti, que também acompanha a cantora numa versão de partir o coração de um clássico caboclo, "Vingança".
O fato é que não dá para falar da cantora Mônica Salmaso sem falar dos arranjos, das felicidades particulares de cada canção reimaginada por ela em parceira com os outros músicos. É ela quem dá sentido a toda essa constelação de artistas, assim como é ela quem cria significados novos para as canções, postas na vizinhança umas das outras. São muitos tipos de inteligência musical em jogo; e a garimpagem do repertório se justifica e completa pelo filtro do canto.
Já era essa, decerto, a proposta nos discos anteriores; mas "Iaiá" lança Mônica Salmaso numa outra dimensão, ao mesmo tempo mais trabalhada e mais aberta, mais disponível para ocupar o lugar que lhe cabe no céu do Brasil. Se tudo, afinal, nos leva de volta para a voz, esse retorno não é qualquer retorno: é um avanço. Voltar com Mônica Salmaso à voz de Mônica Salmaso passou a ser, para todos nós, um dos modos necessários de educação musical. Vale dizer: um dos modos de entender nossa roça e nossa aldeia, na cidade lagoa do agora.


Iaiá
    
Artista: Mônica Salmaso
Lançamento: Biscoito Fino
Quanto: R$ 24, em média



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