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MÚSICA/CRÍTICA
A cantora Mônica Salmaso lança novo disco pela Biscoito Fino com repertório que vai do samba a Tom Zé
Quando tudo nos leva de volta para a voz
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Um dos instrumentos mais
lindos do mundo é a voz de
Mônica Salmaso. E ninguém toca
a voz de Mônica Salmaso melhor
do que Mônica Salmaso. Que ela
não se contenta com suas virtudes
naturais, mas usa o instrumento
para realizar projetos do maior
relevo para todos nós, nesse momento da nossa música, fica demonstrado mais uma vez em seu
novo disco, "Iaiá".
É o quarto CD, depois de "Afro-Sambas" (1995), "Trampolim"
(1998) e "Voadeira" (1999). O disco reúne canções de meia dezena
de aventuras que Mônica vem
realizando há dois anos na série
"Ponto InComum" do Sesc Ipiranga e em outros projetos.
A natureza desses encontros define o caráter da cantora: para cada show, convidou artistas de
ponta de acervos menos visitados
da música popular. Foi assim com
o novo samba e o novo choro do
Rio -representados no disco pelas faixas de abertura, "Moro na
Roça" (Xangô da Mangueira) e
"Cabrochinha" (Maurício Carrilho/P. César Pinheiro), e pela última, fechando temática e musicalmente o ciclo, "Na Aldeia" (Sílvio
Caldas)-, que ela canta acompanhada por Carrilho, Luciana Rabello e seus parceiros da Acari.
O disco também tem participação do pianista André Mehmari,
reinventando com virtuosismo
composições de Jair do Cavaquinho e Chico Buarque. O quinteto
de clarinetes Sujeito a Guincho
acompanha um samba cômico,
"Cidade Lagoa", fazendo proezas
de madrigalismo: quem quiser saber como se faz um pescoço de girafa ao clarinete pode consultar a
faixa 8. O violonista Paulo Bellinati toca "Por Toda a Minha Vida"
(Jobim/Vinícius) e faz o arranjo
de "Assum Branco" (Zé Miguel
Wisnik), traduzida da dicção musical nordestina para um registro
de música negra mineira. Rodolfo
Stroeter tocou baixo, produziu o
disco e trouxe de lambuja uma
toada instantaneamente clássica
(em parceria com Joyce).
Instrumentista da Orquestra
Popular de Câmara, Mônica convidou o pianista Benjamin Taubkin e colegas para "É Doce Morrer
no Mar" (Caymmi), com direito a
contrapontos bachianos, "Onde
Ir" (Vanessa da Mata, liderando a
ala dos novíssimos compositores)
e "Menina Amanhã de Manhã"
(Tom Zé). O arranjo dessa última
a transforma numa peça de música de câmara, com episódios modulatórios, que vão do maracatu
ao circo. Sem falar na sanfona de
Toninho Ferragutti, que também
acompanha a cantora numa versão de partir o coração de um
clássico caboclo, "Vingança".
O fato é que não dá para falar da
cantora Mônica Salmaso sem falar dos arranjos, das felicidades
particulares de cada canção reimaginada por ela em parceira
com os outros músicos. É ela
quem dá sentido a toda essa constelação de artistas, assim como é
ela quem cria significados novos
para as canções, postas na vizinhança umas das outras. São
muitos tipos de inteligência musical em jogo; e a garimpagem do
repertório se justifica e completa
pelo filtro do canto.
Já era essa, decerto, a proposta
nos discos anteriores; mas "Iaiá"
lança Mônica Salmaso numa outra dimensão, ao mesmo tempo
mais trabalhada e mais aberta,
mais disponível para ocupar o lugar que lhe cabe no céu do Brasil.
Se tudo, afinal, nos leva de volta
para a voz, esse retorno não é
qualquer retorno: é um avanço.
Voltar com Mônica Salmaso à voz
de Mônica Salmaso passou a ser,
para todos nós, um dos modos
necessários de educação musical.
Vale dizer: um dos modos de entender nossa roça e nossa aldeia,
na cidade lagoa do agora.
Iaiá
Artista: Mônica Salmaso
Lançamento: Biscoito Fino
Quanto: R$ 24, em média
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