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FORMA&ESPAÇO
Ur, de urbano
GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA
A idéia de cidade está por
trás de muitos conceitos fundamentais que orientam a sociedade. Um exemplo clássico é a palavra "política", que em grego antigo está ligado à cidade (pólis),
como noção de "cidadania". Mas
sempre me invoquei com uma outra coincidência envolvendo a definição de cidade: a semelhança
dos nomes Ur e Uruk, que designam as primeiras cidades de que
se tem notícia, construídas na
Mesopotâmia por volta de 3.200
a.C., com o radical da nossa palavra "urbano", do latim "urbe".
Não é curioso que a partícula silábica "ur", que nomeia as terras
do profeta Abraão e do lendário
herói construtor de cidades Gilgamesh, e que tem a simplicidade de
um grito primal, esteja incluída
em palavras como urbe e burgo?
A partir dessas associações simples, fui me dando conta de que
"ur" é uma partícula sonora presente em palavras-chave de nossa
árvore lingüística, tais como uretra (o canal do sêmen), urano (em
grego, o céu), e urânio (usado na
produção da energia nuclear).
Enfim, senti-me de pronto diante de uma urdidura cosmológica
digna de ter sido arquitetada por
Jorge Luis Borges. Pois bem, essa
inquietação divertida aumentou
ainda quando me disseram que
"ur", em alemão, é origem.
Consultando um amigo, vim a
saber que a associação do "ur"
germânico ao "Ur" mesopotâmico é clássica, e gozou de muito
prestígio entre os românticos alemães do século 19, aludindo a
uma suposta língua-mãe da humanidade, e alimentando um
"mito de origem" ariano que ocupou a imaginação de germanófilos, e esteve na base da eugenia
nazista.
É claro que, de minha parte,
não são os desdobramentos ideológicos dessas coincidências que
motivam a reflexão, nem a sua
validade histórica, mas a idéia de
que o aparecimento concreto da
cidade na história viesse a nomear aquilo que se entende por
origem, fundamento. Quer dizer:
a partir de um caminho associativo chegaríamos a cidade como
metáfora da condição humana
em sua engenhosidade edificante,
ritual. Condição que é também
trágica, pois as cidades, assim como os homens, estão sujeitas ao
ciclo de vida e morte. Sentido que
está por trás das "cidades invisíveis" de Italo Calvino, das "cidades inventadas" de Ferreira Gullar, assim como de inúmeros contos de Borges.
Borges é um mestre dos enigmas, e em "Tlön, Uqbar, Orbis
Tertius" descreve uma cidade/
país/planeta inventado, por uma
sociedade secreta, como um mundo fantástico mas ordenado, cuja
existência (fictícia) é atestada por
sinais erráticos que vão sendo
deixados em tratados acadêmicos, verbetes de enciclopédia etc.
Em Tlön, a realidade pode ser
fabricada pelo desejo, materializando objetos, na forma de achados arqueológicos, que mudam a
nossa compreensão do passado.
Essa propriedade, em seu estado
mais puro, diz Borges, é a "ur".
Poderosa imagem da nossa
compulsão em criar futuros com
os mesmos olhos arregalados com
que olhamos para o passado, como que buscando a senha para
algo secreto na fronteira inominável entre o ocultamento e o encantamento.
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