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CECILIA GIANNETTI
Estrangeiro
Quem imigra tem os olhos aplicados, à procura de sinais de sua identidade respingados em letreiros de mercearias
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"NOW THAT I am categorized / Officer, get me naturalized" - Gogol Bordello, "Immigrant Punk" (ouçam
Gogol Bordello em www.myspace.com/gogolbordello)
Há duas maneiras de se viver no
estrangeiro. Uma delas é deixando
de ser estrangeiro. Guardar as raízes numa caixa dentro do closet,
para serem retiradas novamente
apenas como fotografias quando
surgir a pergunta "De onde você é?"
-constantemente ouvida e repassada entre pessoas de tantos lugares distantes, em cidades de imigrantes como Nova York, Londres
ou Berlim. Há quem mostre apenas
o adesivo colado do lado de fora da
caixa: "origens", escondendo o conteúdo como se fossem as economias que resguarda das taxas de
um banco. Assim protegida, sua
história pertence mais ao presente
que ao passado.
Não é muito acessada, enquanto
o estrangeiro se mistura à cor e hábitos locais. Outros levantarão a
tampa da caixa de vez em quando,
para exibir rapidamente o que comiam na infância de quintal, o que
ouviam no rádio, como eram as
pessoas e de que maneira se comportavam numa fila de banco, ou
no supermercado do seu lugar de
origem; se havia shopping lá, se havia bombas, guerra civil, desemprego, casamentos de velhos com
crianças e ditaduras militares. Ou
se tudo era "normal", o tipo de normalidade dos países mais ricos.
Outra maneira de se viver em
uma terra que não é a sua é entrando na caixa da identidade nacional
alheia. Protegido por suas paredes,
usa-se a caixa como bote salva-vidas, flutuando cautelosamente pela cultura e pelo dia-a-dia do novo
país. Nesse caso, o estrangeiro raramente cruza as fronteiras da Chinatown de NY, onde vive e trabalha
entre a sua própria gente, trocando
meia dúzia de expressões em inglês
por dia, geralmente com fregueses:
"Five "dólá'", ""Haf" a nice day".
Poucas palavras, mas a cisão está
lá. Em Tower Hamlets, o imigrante
execra o jubileu da rainha. No caso
dos turcos na Alemanha, às vezes é
preciso que enxerguem semelhanças com a paisagem de Istambul até
mesmo no comércio em torno do
metrô de Kotbusser Tor. No Rio de
Janeiro, um imigrante irlandês
abre um pub em Ipanema, cercando-se de outros irlandeses que apenas passam pela cidade quente.
De todo modo, quem imigra tem
os olhos sempre aplicados, despertos, à procura de sinais de sua identidade respingados em letreiros de
mercearias, embalagens de produtos importados, na língua original
ouvida ao acaso no metrô, falada
entre turistas; a camisa de um time
de futebol pelo qual torce à distância, avistada enquanto sobe a Quinta Avenida. Os olhos procuram fantasmas, reconhecimentos. E os encontram em qualquer vizinhança.
Em Notting Hill, uma caribenha vê
um ex-namorado atravessando a
rua; amigos deixados para trás esperam em esquinas improváveis.
Liberdade, em São Paulo, aguarda
visitas que talvez venham para ficar. Os fantasmas do imigrante estão todos vivos -e, tirando a saudade, passam bem. Pelo menos é o
que contam nas cartas.
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