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NINA HORTA
Va-t-en, triglicérides!
Acho que essa revolução só chegará a nós, os donos da comida caseira, daqui a um século
NA ÚLTIMA matéria, comentamos os 40 ou 50 anos de
nouvelle cuisine. E como é
que todo esse tempo de pratos deliciosamente bem preparados, ingredientes divinos, cozinhas de avó revisitadas, laboratórios passou pela
população em geral como uma brisa,
um leve bater de asas? Uma pena,
por que será?
Não é por falta de boniteza, gostosura do produto ou falta de dinheiro
nosso. Pegar um prato fundo, forrá-lo com os sucos de uma carne que foi
feita um dia antes no forno e, sobre
ele, duas sardinhas fritas, não fica
mais caro do que nada. (Provei essa
mistura no restaurante de Alastair
Little, nos anos 1980, em Londres.)
Bom, vocês me dirão que as revoluções às vezes levam séculos. Deve
ser verdade. Quem de nós já se pegou transformando o nosso almoço
diário de um peito de frango com alface em esferas nevadas, do tamanho de azeitonas, com a espuma de
um leve verde sobre o branco?
Outro dia, fui a uma demonstração das novas máquinas que produzem os modernos milagres da revolução. Queria todas elas, queria cozinhar em saquinhos com porções individuais, no vapor, para que nenhuma migalha de gosto se perdesse...
Mas onde caberiam na minha pequena cozinha? Além de tudo, não
posso deixar de lado o liqüidificador
amado pelas empregadas e por mim,
que já atingimos a sofisticação de
não socarmos tudo no pilão. O
processador ainda tem leves mistérios. Na verdade, há um certo
problema nos encaixes daquelas
tampas, não há?
Daí, acho eu, que essa revolução
só chegará a nós, os donos da comida
caseira, daqui a um século. Aprendemos a arrumar o prato mais bonitinho... e só.
O que veio junto dessas inovações
é o que mais me desagrada. Tem um
pouco mais de tempo, mas esta moda pegou. A tirania das dietas irreconciliáveis entre si. A comida como
remédio. É verdade que, no fim da
maioria dos simpósios sobre o que
se deve ou não comer, aparece alguém que resume tudo em: "No fim,
se comerem um prato equilibrado,
com um pouco de cada coisa, estarão
fazendo o certo". Mamma mia, pensar tanto para fazer o que todo mundo sempre fez, sem pensar em calorias, aditivos, oxidantes, vitaminas?
Gosto de um trecho do livro de Felipe Fernández-Armesto, "Near a
Thousand Tables", em que ele atribui essa mania de dietas à Segunda
Guerra e ao esforço, principalmente
inglês, de alimentar bem suas crianças. Foi uma experiência interessante. A ingestão de frutos diminuiu
50%, a de batatas aumentou 45%.
Comeram mais 1/3 de hortaliças do
que antes. A falta de carne e peixe foi
substituída por leite e cereais, e produtos de farinha integral, mais aditivos e vitaminas. O resultado foi um
espanto, crianças em plena guerra
desabrochando... com a saúde muito
melhor do que antes. E, então, várias
medidas tomadas durante a guerra
foram mantidas, principalmente o
pão integral... e os narizes metidos
nas nossas comidas.
Armesto procura outras explicações. Vocês assistiram a "Esperança
e Glória"? Lembram-se das crianças
sendo evacuadas da cidade, de verdadeiras favelas para o campo, áreas
rurais cheias de peixes, coelhos, maçãs caindo dos pés, caminhadas e
brincadeiras ao ar livre, pescarias
com avós? Foi o conjunto dessas
melhorias de vida, e não o pão preto,
que salvou as crianças de inanição.
Os alemães, em pior situação,
constataram que qualquer criança
à qual dessem pão, qualquer pão,
branco ou preto, crescia e engor-
dava.
De lá para cá, essa associação da
comida com a morte, e não com o
prazer e a vida, nos leva ao desespero. Impossível conversar, escrever
ou pensar sobre comida, ou pior, comer, enquanto o pavor dos triglicérides nos rondar. Va-t-en, Satan!
Viver, assim, para quê?
ninahorta@uol.com.br
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