São Paulo, quinta-feira, 01 de maio de 2008

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NINA HORTA

Va-t-en, triglicérides!

Acho que essa revolução só chegará a nós, os donos da comida caseira, daqui a um século

NA ÚLTIMA matéria, comentamos os 40 ou 50 anos de nouvelle cuisine. E como é que todo esse tempo de pratos deliciosamente bem preparados, ingredientes divinos, cozinhas de avó revisitadas, laboratórios passou pela população em geral como uma brisa, um leve bater de asas? Uma pena, por que será?
Não é por falta de boniteza, gostosura do produto ou falta de dinheiro nosso. Pegar um prato fundo, forrá-lo com os sucos de uma carne que foi feita um dia antes no forno e, sobre ele, duas sardinhas fritas, não fica mais caro do que nada. (Provei essa mistura no restaurante de Alastair Little, nos anos 1980, em Londres.)
Bom, vocês me dirão que as revoluções às vezes levam séculos. Deve ser verdade. Quem de nós já se pegou transformando o nosso almoço diário de um peito de frango com alface em esferas nevadas, do tamanho de azeitonas, com a espuma de um leve verde sobre o branco?
Outro dia, fui a uma demonstração das novas máquinas que produzem os modernos milagres da revolução. Queria todas elas, queria cozinhar em saquinhos com porções individuais, no vapor, para que nenhuma migalha de gosto se perdesse... Mas onde caberiam na minha pequena cozinha? Além de tudo, não posso deixar de lado o liqüidificador amado pelas empregadas e por mim, que já atingimos a sofisticação de não socarmos tudo no pilão. O processador ainda tem leves mistérios. Na verdade, há um certo problema nos encaixes daquelas tampas, não há?
Daí, acho eu, que essa revolução só chegará a nós, os donos da comida caseira, daqui a um século. Aprendemos a arrumar o prato mais bonitinho... e só.
O que veio junto dessas inovações é o que mais me desagrada. Tem um pouco mais de tempo, mas esta moda pegou. A tirania das dietas irreconciliáveis entre si. A comida como remédio. É verdade que, no fim da maioria dos simpósios sobre o que se deve ou não comer, aparece alguém que resume tudo em: "No fim, se comerem um prato equilibrado, com um pouco de cada coisa, estarão fazendo o certo". Mamma mia, pensar tanto para fazer o que todo mundo sempre fez, sem pensar em calorias, aditivos, oxidantes, vitaminas?
Gosto de um trecho do livro de Felipe Fernández-Armesto, "Near a Thousand Tables", em que ele atribui essa mania de dietas à Segunda Guerra e ao esforço, principalmente inglês, de alimentar bem suas crianças. Foi uma experiência interessante. A ingestão de frutos diminuiu 50%, a de batatas aumentou 45%. Comeram mais 1/3 de hortaliças do que antes. A falta de carne e peixe foi substituída por leite e cereais, e produtos de farinha integral, mais aditivos e vitaminas. O resultado foi um espanto, crianças em plena guerra desabrochando... com a saúde muito melhor do que antes. E, então, várias medidas tomadas durante a guerra foram mantidas, principalmente o pão integral... e os narizes metidos nas nossas comidas.
Armesto procura outras explicações. Vocês assistiram a "Esperança e Glória"? Lembram-se das crianças sendo evacuadas da cidade, de verdadeiras favelas para o campo, áreas rurais cheias de peixes, coelhos, maçãs caindo dos pés, caminhadas e brincadeiras ao ar livre, pescarias com avós? Foi o conjunto dessas melhorias de vida, e não o pão preto, que salvou as crianças de inanição.
Os alemães, em pior situação, constataram que qualquer criança à qual dessem pão, qualquer pão, branco ou preto, crescia e engor- dava.
De lá para cá, essa associação da comida com a morte, e não com o prazer e a vida, nos leva ao desespero. Impossível conversar, escrever ou pensar sobre comida, ou pior, comer, enquanto o pavor dos triglicérides nos rondar. Va-t-en, Satan!
Viver, assim, para quê?


ninahorta@uol.com.br

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