São Paulo, domingo, 01 de maio de 2011

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TRÉPLICA

Novela une amor, mentirinhas e revolução

Trama do SBT empastela história ao misturar narrativa do golpe de 64 com rotina dos porões da tortura em 68

FERNANDO DE BARROS E SILVA
COLUNISTA DA FOLHA

Tiago Santiago quis me apresentar à obra de Elio Gaspari. Foi um pouco afobado. Citou um trecho do primeiro dos seus quatro livros sobre o regime militar ("A Ditadura Envergonhada") atribuindo-o ao terceiro volume ("A Ditadura Derrotada").
O objetivo do autor de "Amor e Revolução", do SBT, era contestar a crítica que fiz à novela, especificamente a seus problemas históricos.
O início de "Amor e Revolução" se passa no dia do golpe militar, 31 de março de 1964. Como seu autor, que pretende ser fiel à história, justifica os guerrilheiros que enfiou no enredo, dando tiros, planejando a revolução e morrendo, tudo naquele dia?
Simples. Santiago recorre ao livro de Gaspari para nos lembrar que "no início de 1962, uma nova organização esquerdista", chamada Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), "recebera a bênção cubana" e "planejava a montagem de um dispositivo militar" no país.
Mas omite de sua citação o trecho imediatamente seguinte do livro: "Tratava-se uma guerrilha mambembe (juntava menos de 50 homens)". O MRT evaporou do mapa antes de 1963.
A guerrilha que inspira Santiago não é, obviamente, essa de 1962, que nem houve, mas a que tomou corpo nos anos seguintes ao golpe e foi dizimada depois do AI-5, sobretudo entre 1969 e 1973.
A novela do SBT empastela a história ao embaralhar a narrativa do golpe em 64 com a rotina dos porões da ditadura no pós-68. Será por acaso que os depoimentos reais ao final de cada capítulo sejam feitos por pessoas torturadas depois do AI-5?
Isso não quer dizer, é óbvio, que não se torturou antes disso. Lembre-se o caso de Gregório Bezerra, comunista histórico, arrastado pelas ruas do Recife amarrado a um jipe em 2 de abril de 64.
Segundo Gaspari, em "A Ditadura Escancarada", "entre 1964 e 1968 foram 308 as denúncias de torturas apresentadas por presos políticos às cortes militares. Durante o ano de 1969 elas somaram 1.027 e em 1970, 1.206 (...). Em apenas cinco meses, de setembro de 69 a janeiro de 70, foram estourados 66 aparelhos, encarceradas 320 pessoas e apreendidas mais de 300 armas" (pág.160).
Depois de 68, a tortura foi "transformada em política de Estado" ("A Ditadura Escancarada", pág. 18), o que deu outra dimensão ao problema. Não obstante isso, o monstro foi gestado e, na prática, tolerado desde o governo Castello Branco, como bem mostra Elio Gaspari.
As restrições históricas que fiz à novela são quase acessórias diante do seu desastre dramatúrgico. Os diálogos escolares e impostados, o contorno involuntariamente cômico dos personagens, o "realismo mexicano" de "Amor e Revolução" é o que primeiro incomoda nessa reconstituição de época. Ela lembra, como disse o crítico Eugênio Bucci, aqueles quadros do "Casseta & Planeta" caçoando das novelas.


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