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RESENHA DA SEMANA
O livro inexistente
da Redação
Esta é a resenha de um livro
inexistente. Na semana passada, este caderno publicou um
artigo com o título: "Editoras
recebem Machado, não reconhecem e recusam". O jornal
mandou para umas tantas editoras uma obra menos conhecida daquele que é considerado
-até por quem nunca leu uma
linha de livro nenhum de autor
nenhum, mas vê televisão e lê
jornais e revistas- o maior escritor brasileiro, só que assinada com um pseudônimo. Uma
armadilha cujo objetivo era
provar, com a provável recusa
de um clássico pelas editoras,
que elas não estão mais interessadas em literatura de verdade.
À primeira vista, a intenção
pode parecer das melhores: denunciar como as editoras estão
vendidas ao mercado, ignorando a excelência dos textos literários. A conclusão é, em grande parte, verdadeira, mas por
razões que o próprio jornal não
pode levantar, sob o risco de ser
carregado pela onda da sua
própria denúncia. E vem daí a
hipocrisia da matéria.
Não é porque recusam Machado de Assis hoje (ou por não
saber atribuir um texto menos
conhecido, sob pseudônimo, a
seu verdadeiro autor) que as
editoras estão vendidas ao
mercado, mas porque podem
estar recusando "o Machado de
Assis de hoje", que nada tem a
ver com Machado de Assis.
O jornal que faz a denúncia
também não o conhece, provavelmente não lhe reconheceria
o talento se tivesse a oportunidade e muito menos se daria ao
trabalho de resenhar o seu livro, a tomar pelos títulos a que
dá prioridade. Assim, o que parecia fruto de boas intenções
pode não passar de sofisma.
Não é a primeira vez que jornalistas promovem esse tipo de
armadilha, nem será a última.
O mesmo já foi feito com textos
de Proust e Virginia Woolf, que
acabaram recusados pelas editoras, para deleite não só dos
leitores menos letrados, que intuíram na "recusa de um clássico" (que provavelmente também nunca leram) uma espécie
de heresia, mas por todos aqueles que, tendo algum dia sido
recusados também, se viram ali
reconhecidos e reconfortados.
Sem tomar a defesa das editoras, é preciso saber como funciona a lógica desse jornalismo:
apelar para o consenso e provocar a catarse da maioria.
Imagine uma revista científica
que, recebendo hoje a teoria da
gravidade de Newton assinada
com um pseudônimo, recusasse aquele clássico da ciência.
Você acharia um escândalo?
Por mais que, ao contrário da
ciência, se atribua à literatura
um valor absoluto, este ainda é,
e sempre será, um valor histórico. Você pode achar "O Inferno" de Dante superior a grande
parte da poesia de hoje, mas
não poderia haver a poesia de
hoje se Dante não tivesse escrito a sua "Divina Comédia".
A presença de Dante num
certo momento da história da
literatura ocidental determina
não apenas o seu lugar nessa
história, mas toda a história literária que lhe é posterior. Escrever como Dante hoje é ridículo antes de tudo porque significa ignorar que tenha existido um poeta chamado Dante.
Você também pode achar
que, em relação ao autor de
"Memórias Póstumas de Brás
Cubas", a literatura brasileira
atual é decadente. Mas não se
escreveria dessa forma na literatura brasileira hoje se não tivesse havido Machado de Assis. Escrever hoje um texto (à
maneira) de Machado de Assis
ou Guimarães Rosa não é apenas "démodé" (a despeito das
qualidades absolutas do original), nem simples pastiche,
mas um absurdo tão grande
quanto negar a própria existência do escritor e da história.
Daí essas tentativas enviesadas da mídia para denunciar a
decadência das editoras estarem fadadas ao fracasso, por
não provarem nada, embora isso também não negue a eventual decadência literária do
mercado. É óbvio que se alguém escreve hoje à moda de
Machado de Assis não deveria
ser publicado por nenhuma
editora com um mínimo de
bom senso.
A dificuldade é saber quem é
o Machado de Assis de hoje e é
aí que transparece a má fé do
jornalismo que quer denunciar
o mercado exaltando o próprio
consenso que o alimenta. No
tempo em que Kafka ainda era
vivo e desconhecido, por exemplo, nenhum jornal poderia fazer esse tipo de artigo mandando um texto como "A Metamorfose" para as editoras. Porque a recusa, nesse caso, não
daria matéria. A mídia trabalha
com o consenso e, nesse âmbito, um nome desconhecido, recusado pelas editoras, não produz nenhum efeito.
O escândalo não é que textos
de Machado de Assis e Borges e
Proust, assinados com outros
nomes, possam hoje ser recusados pelas editoras -o que é
correto de um ponto de vista
não mercadológico, mas literário e histórico. O escândalo é as
editoras recusarem o Machado
de Assis, o Borges e o Proust de
hoje. Mas esses levam a desvantagem de que nem você, nem
eu, nem o jornal que quer denunciar o espírito mercantilista
das editoras temos os parâmetros para reconhecê-los.
Porque, como Machado de
Assis, Borges e Proust, cada um
a seu tempo, eles também não
são pastiches do que aprendemos a chamar de clássicos, mas
os autores de um livro que, se
dependesse do espírito desse
consenso preconceituoso, continuaria inexistente.
(BERNARDO CARVALHO)
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