São Paulo, Sábado, 01 de Maio de 1999
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RESENHA DA SEMANA
O livro inexistente

da Redação

Esta é a resenha de um livro inexistente. Na semana passada, este caderno publicou um artigo com o título: "Editoras recebem Machado, não reconhecem e recusam". O jornal mandou para umas tantas editoras uma obra menos conhecida daquele que é considerado -até por quem nunca leu uma linha de livro nenhum de autor nenhum, mas vê televisão e lê jornais e revistas- o maior escritor brasileiro, só que assinada com um pseudônimo. Uma armadilha cujo objetivo era provar, com a provável recusa de um clássico pelas editoras, que elas não estão mais interessadas em literatura de verdade.
À primeira vista, a intenção pode parecer das melhores: denunciar como as editoras estão vendidas ao mercado, ignorando a excelência dos textos literários. A conclusão é, em grande parte, verdadeira, mas por razões que o próprio jornal não pode levantar, sob o risco de ser carregado pela onda da sua própria denúncia. E vem daí a hipocrisia da matéria.
Não é porque recusam Machado de Assis hoje (ou por não saber atribuir um texto menos conhecido, sob pseudônimo, a seu verdadeiro autor) que as editoras estão vendidas ao mercado, mas porque podem estar recusando "o Machado de Assis de hoje", que nada tem a ver com Machado de Assis.
O jornal que faz a denúncia também não o conhece, provavelmente não lhe reconheceria o talento se tivesse a oportunidade e muito menos se daria ao trabalho de resenhar o seu livro, a tomar pelos títulos a que dá prioridade. Assim, o que parecia fruto de boas intenções pode não passar de sofisma.
Não é a primeira vez que jornalistas promovem esse tipo de armadilha, nem será a última. O mesmo já foi feito com textos de Proust e Virginia Woolf, que acabaram recusados pelas editoras, para deleite não só dos leitores menos letrados, que intuíram na "recusa de um clássico" (que provavelmente também nunca leram) uma espécie de heresia, mas por todos aqueles que, tendo algum dia sido recusados também, se viram ali reconhecidos e reconfortados.
Sem tomar a defesa das editoras, é preciso saber como funciona a lógica desse jornalismo: apelar para o consenso e provocar a catarse da maioria. Imagine uma revista científica que, recebendo hoje a teoria da gravidade de Newton assinada com um pseudônimo, recusasse aquele clássico da ciência. Você acharia um escândalo?
Por mais que, ao contrário da ciência, se atribua à literatura um valor absoluto, este ainda é, e sempre será, um valor histórico. Você pode achar "O Inferno" de Dante superior a grande parte da poesia de hoje, mas não poderia haver a poesia de hoje se Dante não tivesse escrito a sua "Divina Comédia".
A presença de Dante num certo momento da história da literatura ocidental determina não apenas o seu lugar nessa história, mas toda a história literária que lhe é posterior. Escrever como Dante hoje é ridículo antes de tudo porque significa ignorar que tenha existido um poeta chamado Dante.
Você também pode achar que, em relação ao autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", a literatura brasileira atual é decadente. Mas não se escreveria dessa forma na literatura brasileira hoje se não tivesse havido Machado de Assis. Escrever hoje um texto (à maneira) de Machado de Assis ou Guimarães Rosa não é apenas "démodé" (a despeito das qualidades absolutas do original), nem simples pastiche, mas um absurdo tão grande quanto negar a própria existência do escritor e da história.
Daí essas tentativas enviesadas da mídia para denunciar a decadência das editoras estarem fadadas ao fracasso, por não provarem nada, embora isso também não negue a eventual decadência literária do mercado. É óbvio que se alguém escreve hoje à moda de Machado de Assis não deveria ser publicado por nenhuma editora com um mínimo de bom senso.
A dificuldade é saber quem é o Machado de Assis de hoje e é aí que transparece a má fé do jornalismo que quer denunciar o mercado exaltando o próprio consenso que o alimenta. No tempo em que Kafka ainda era vivo e desconhecido, por exemplo, nenhum jornal poderia fazer esse tipo de artigo mandando um texto como "A Metamorfose" para as editoras. Porque a recusa, nesse caso, não daria matéria. A mídia trabalha com o consenso e, nesse âmbito, um nome desconhecido, recusado pelas editoras, não produz nenhum efeito.
O escândalo não é que textos de Machado de Assis e Borges e Proust, assinados com outros nomes, possam hoje ser recusados pelas editoras -o que é correto de um ponto de vista não mercadológico, mas literário e histórico. O escândalo é as editoras recusarem o Machado de Assis, o Borges e o Proust de hoje. Mas esses levam a desvantagem de que nem você, nem eu, nem o jornal que quer denunciar o espírito mercantilista das editoras temos os parâmetros para reconhecê-los.
Porque, como Machado de Assis, Borges e Proust, cada um a seu tempo, eles também não são pastiches do que aprendemos a chamar de clássicos, mas os autores de um livro que, se dependesse do espírito desse consenso preconceituoso, continuaria inexistente.
(BERNARDO CARVALHO)


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