São Paulo, quarta-feira, 01 de junho de 2005

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MARCELO COELHO

Quando só havia cartas nas caixinhas do correio

Conta de luz, fatura de cartão de crédito, folheto de disque-pizza a gente recebe todo dia. Mas carta de verdade, carta de correio, posso contar nos dedos as que chegaram em casa no último ano. É mais uma daquelas coisas que entraram em extinção, a exemplo do disco de vinil, da gilete de barba, do afogador de carro, do olho mágico na porta dos apartamentos.
Logo virão outros itens: a secretária eletrônica, as cédulas de dinheiro, os óculos, as chaves, as maçanetas, os fios: nada disso parece ter chance de sobreviver, porque a tendência será o fim dos objetos "intermediários", dos instrumentos de ligação entre uma coisa e outra.
Em breve pessoas e coisas poderão relacionar-se diretamente: um toque dos meus dedos no caixa do supermercado, por exemplo, eliminará os cartões de plástico e as senhas. E com isso se tornarão anacrônicos todos os utensílios transicionais, todos os botões, puxadores, fechaduras, plugues e outras ninharias que servem para nos colocar em comunicação com objetos mais importantes. Será o fim de uma legião de "pequenos embaixadores de um mundo mudo", para lembrar o poeta Francis Ponge, que escreveu o elogio de objetos simples como a janela, a maçaneta e o engradado.
"Quando o Carteiro Chegar", livro de Mário Rui Feliciani publicado recentemente pela Imprensa Oficial e pela Oficina Rubens Borba de Moraes, reúne dezenas de fotografias de um desses objetos humildes quase extintos, "pongianos", que mal percebemos no dia-a-dia: a caixa de correio.
São imagens fascinantes, rigorosas, comoventes. Vemos ocupar a página inteira de um livro de tamanho médio uma parede de alvenaria caiada de branco até a metade, manchada de algumas pichações. A outra metade da parede se divide irregularmente entre uma seção de ripas amarelo-enxofre e outra seção de reboco cinza-escuro, onde o número da casa aparece, pintado de verde, numa plaquinha de madeira gasta. Embutida dentro de um retângulo, que alguém escavou dentro da parede branca, se destaca à nossa vista uma caixa pintada de vermelho-claro, esperando cartas sem dúvida difíceis de chegar. O efeito é o de um quadro abstrato e, não por acaso, o livro tem prefácio do pintor Arcângelo Ianelli.
A maior parte das fotos foi tirada em bairros da periferia de São Paulo, onde a improvisação e a precariedade dos materiais ocasiona todo tipo de surpresa. Certas caixas de correspondência são como barracos de favela, por vezes irreconhecíveis em meio à ferrugem e aos fios de arame que as ligam fragilmente a uma estaca de madeira ou a um pedaço de portão.
Outras, ao contrário, parecem seguir o modelo utópico da casa de boneca, da perfeita habitação em miniatura, com telhado e janela caprichosamente pintados e mesmo trepadeiras subindo pelas mínimas paredes. Virando a página, encontramos uma caixa de correio sóbria, branca, imaculada como um chalé de Le Corbusier, suspensa magicamente contra um muro em pedaços.
Talvez como reflexo de uma cidade violenta, muitas dessas caixas de correio se mostram hostis à comunicação com o mundo exterior: um semicírculo preto de lata, tendo uma fresta voltada para baixo, como uma viseira no capacete de um Darth Vader do quarto mundo, parece armado contra qualquer aviso de cobrança ou intimação judicial.
Mais freqüentes, contudo, são as caixas capazes de evocar tudo o que numa casa existe de feminino -a espera, o segredo, o recesso-, tendo às vezes até um coração de "lar, doce lar" a enfeitá-las.
A carência de comunicação pode assumir também intensidades eróticas: numa das fotos, fortes pinceladas de tinta preta sobre um muro assumem a forma de uma calcinha, no centro da qual uma caixa de cartas pintada de vermelho vivo procura chamar a atenção dos passantes.
Também existem as caixas que "não dizem nada", que são pura bricolagem de latas, canos velhos ou restos de caixote, exigindo um olho treinado para reconhecê-las. Logo nas primeiras páginas do livro de Feliciani, entretanto, topamos com uma caixa que é o elogio da palavra escrita: numa chapa azul-clara, quase da cor dos antigos papéis de cabograma, alguém escreveu por extenso, com tinta preta e letra rústica, o seu endereço completo, sem esquecer o número do CEP e o nome do bairro. A caixa de cartas parece, ela própria, um envelope -e não será culpa do carteiro se nenhuma correspondência chegar a esse destino.
Deixo para o final a foto mais bonita. Empertigado num barranco, na curva de uns degraus tomados pelo mato, sem que se veja casa por perto, um pequeno prisma de madeira branca parece buscar bem longe, no horizonte, algum sinal de vida, e a quem quer que se aproxime está pronto a responder, com simplicidade e altivez: "Sim, é aqui mesmo, aqui mora um ser humano".
Fotografadas isoladamente, em sua variedade infinita de fisionomias e temperamentos, essas caixas de correspondência são como que testemunhos discretos de cada existência humana. É verdade que os Correios -e suas caixinhas- não nos trazem associações muito boas nestes últimos tempos, mas não pensei em CPI quando estava fazendo este artigo. No livro de Feliciani, apesar de tudo, um mundo em que existe correio é algo de que dá para se orgulhar.

PS: No artigo da semana passada, escrevi que um quadro de "Pânico na TV!" imitava José Luiz Datena. Foi um erro. O imitado é Milton Neves.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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