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MARCELO COELHO
Quando só havia cartas nas caixinhas do correio
Conta de luz, fatura de cartão de crédito, folheto de disque-pizza a gente recebe todo dia.
Mas carta de verdade, carta de
correio, posso contar nos dedos as
que chegaram em casa no último
ano. É mais uma daquelas coisas
que entraram em extinção, a
exemplo do disco de vinil, da gilete de barba, do afogador de carro,
do olho mágico na porta dos
apartamentos.
Logo virão outros itens: a secretária eletrônica, as cédulas de dinheiro, os óculos, as chaves, as
maçanetas, os fios: nada disso parece ter chance de sobreviver, porque a tendência será o fim dos objetos "intermediários", dos instrumentos de ligação entre uma coisa e outra.
Em breve pessoas e coisas poderão relacionar-se diretamente:
um toque dos meus dedos no caixa do supermercado, por exemplo, eliminará os cartões de plástico e as senhas. E com isso se tornarão anacrônicos todos os utensílios transicionais, todos os botões, puxadores, fechaduras, plugues e outras ninharias que servem para nos colocar em comunicação com objetos mais importantes. Será o fim de uma legião
de "pequenos embaixadores de
um mundo mudo", para lembrar
o poeta Francis Ponge, que escreveu o elogio de objetos simples como a janela, a maçaneta e o engradado.
"Quando o Carteiro Chegar", livro de Mário Rui Feliciani publicado recentemente pela Imprensa
Oficial e pela Oficina Rubens Borba de Moraes, reúne dezenas de
fotografias de um desses objetos
humildes quase extintos, "pongianos", que mal percebemos no
dia-a-dia: a caixa de correio.
São imagens fascinantes, rigorosas, comoventes. Vemos ocupar
a página inteira de um livro de
tamanho médio uma parede de
alvenaria caiada de branco até a
metade, manchada de algumas
pichações. A outra metade da parede se divide irregularmente entre uma seção de ripas amarelo-enxofre e outra seção de reboco
cinza-escuro, onde o número da
casa aparece, pintado de verde,
numa plaquinha de madeira gasta. Embutida dentro de um retângulo, que alguém escavou dentro
da parede branca, se destaca à
nossa vista uma caixa pintada de
vermelho-claro, esperando cartas
sem dúvida difíceis de chegar. O
efeito é o de um quadro abstrato
e, não por acaso, o livro tem prefácio do pintor Arcângelo Ianelli.
A maior parte das fotos foi tirada em bairros da periferia de São
Paulo, onde a improvisação e a
precariedade dos materiais ocasiona todo tipo de surpresa. Certas caixas de correspondência são
como barracos de favela, por vezes irreconhecíveis em meio à ferrugem e aos fios de arame que as
ligam fragilmente a uma estaca
de madeira ou a um pedaço de
portão.
Outras, ao contrário, parecem
seguir o modelo utópico da casa
de boneca, da perfeita habitação
em miniatura, com telhado e janela caprichosamente pintados e
mesmo trepadeiras subindo pelas
mínimas paredes. Virando a página, encontramos uma caixa de
correio sóbria, branca, imaculada
como um chalé de Le Corbusier,
suspensa magicamente contra
um muro em pedaços.
Talvez como reflexo de uma cidade violenta, muitas dessas caixas de correio se mostram hostis à
comunicação com o mundo exterior: um semicírculo preto de lata,
tendo uma fresta voltada para
baixo, como uma viseira no capacete de um Darth Vader do quarto mundo, parece armado contra
qualquer aviso de cobrança ou
intimação judicial.
Mais freqüentes, contudo, são
as caixas capazes de evocar tudo
o que numa casa existe de feminino -a espera, o segredo, o recesso-, tendo às vezes até um coração de "lar, doce lar" a enfeitá-las.
A carência de comunicação pode assumir também intensidades
eróticas: numa das fotos, fortes
pinceladas de tinta preta sobre
um muro assumem a forma de
uma calcinha, no centro da qual
uma caixa de cartas pintada de
vermelho vivo procura chamar a
atenção dos passantes.
Também existem as caixas que
"não dizem nada", que são pura
bricolagem de latas, canos velhos
ou restos de caixote, exigindo um
olho treinado para reconhecê-las.
Logo nas primeiras páginas do livro de Feliciani, entretanto, topamos com uma caixa que é o elogio
da palavra escrita: numa chapa
azul-clara, quase da cor dos antigos papéis de cabograma, alguém
escreveu por extenso, com tinta
preta e letra rústica, o seu endereço completo, sem esquecer o número do CEP e o nome do bairro.
A caixa de cartas parece, ela própria, um envelope -e não será
culpa do carteiro se nenhuma
correspondência chegar a esse
destino.
Deixo para o final a foto mais
bonita. Empertigado num barranco, na curva de uns degraus
tomados pelo mato, sem que se
veja casa por perto, um pequeno
prisma de madeira branca parece
buscar bem longe, no horizonte,
algum sinal de vida, e a quem
quer que se aproxime está pronto
a responder, com simplicidade e
altivez: "Sim, é aqui mesmo, aqui
mora um ser humano".
Fotografadas isoladamente, em
sua variedade infinita de fisionomias e temperamentos, essas caixas de correspondência são como
que testemunhos discretos de cada existência humana. É verdade
que os Correios -e suas caixinhas- não nos trazem associações muito boas nestes últimos
tempos, mas não pensei em CPI
quando estava fazendo este artigo. No livro de Feliciani, apesar
de tudo, um mundo em que existe
correio é algo de que dá para se
orgulhar.
PS: No artigo da semana passada,
escrevi que um quadro de "Pânico na TV!" imitava José Luiz Datena. Foi um erro. O imitado é Milton Neves.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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