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CARLOS HEITOR CONY
Em busca de mãos limpas
Queria lavar as mãos de tudo o que fiz, do nascimento involuntário ao voluntário ceticismo
OUTRO DIA, após almoço com
amigo que não via havia muito, ele me perguntou, de repente, cortando a conversa que
até aquele momento era sobre os
recentes e recorrentes escândalos
de nossa vida pública: "Por que diabos você deu o nome de "Pilatos" a
um romance que nada tem a ver
com o Pilatos?"
Nunca me haviam feito essa pergunta. Afinal, Pilatos entrou no credo sem ter nada o que fazer ali, não é
dogma de fé nem de moral de nenhuma religião. A expressão "entrou como Pilatos no credo" é antiga
e usada para fazer referência a uma
pessoa ou coisa que nada tem a ver
com o assunto em pauta.
Eu podia alegar exatamente isso,
Pilatos era título do romance do
mesmo modo pelo qual entrara no
credo. Seria meia verdade, não fosse
a epígrafe que coloquei na página de
rosto, citação do samba erudito de
Paulo Vanzolini: "E assim me rendi
ante a força dos fatos: lavei as minhas mãos como Pôncio Pilatos".
Na realidade, eu queria lavar as
mãos de tudo o que fizeram por aí, as
guerras púnicas, os dez mandamentos, o rapto das Sabinas, a Idade Média, a política ambiental, a Reforma,
a Contra-Reforma, o estilo gótico, o
terremoto de Lisboa, a queda da
Bastilha, a revolta do couraçado Potemkim, a Dieta de Worms (nem sei
bem o que é isso), a Confederação do
Equador, a Jovem Guarda, as dez
mais do finado Ibrahim Sued.
Mas, principalmente, lavar as
mãos de tudo o que fiz pela vida afora, desde o nascimento involuntário
até o voluntário ceticismo que não
acredita nem mesmo na eficiente lavagem das mãos. Sempre resta uma
sujeira qualquer, da qual ninguém
consegue se limpar.
No caso do romance, onde realmente Pilatos não é mencionado
nem sequer uma vez, a lavagem das
mãos é tanto quanto possível completa. Moral, literatura, bom gosto,
boas intenções, lógica, artes em geral, homens, mulheres e crianças,
amor, sexo, patriotismo, cultura,
progresso, dinheiro, tudo o que existe de bom ou de mau na condição
humana é avaliado por um pobre
diabo castrado que atravessa diversos episódios de uma época (início
dos anos 70) mas sem se comprometer com nada, alcançando quase
sem querer uma espécie de bem-aventurança miserável que não o
satisfaz, mas o impede de cair no
desespero.
Bem, eu já havia publicado oito romances e, bem ou mal, ia levando,
mas sentia necessidade de uma espécie de fala do trono, um trono
imaginário, sem súditos, pela qual
eu me expressasse sem regras nem
conveniências. Não seria um desabafo, uma catarse, nem mesmo um
vômito. Não seria nada: seria eu, o
que dá na mesma.
Usei como impreciso pano de fundo a situação nacional do Brasil naquele tempo, quando todos éramos
mais ou menos castrados. Mas o romance nada tem de política; pelo
contrário, é de uma alienação radical, atroz.
De tal forma que, depois de publicá-lo, em 1972, perdi vontade e interesse em escrever ficção, passei
23 anos sem pisar numa livraria,
sem tomar conhecimento das novidades no campo da arte e da lite-
ratura, fiz infinitas coisas que nunca
fizera, descobri tardiamente que o
homem feliz não escreve livros nem
se dedica às artes -muletas em que
alguns, gênios ou não gênios, se
escoram para suportar a condição
humana.
Isso não quer dizer que fui integralmente feliz nessa fase, mas cheguei perto, chutei na trave. Mais um
pouco e teria chegado lá. Para todos
os efeitos, eu lavara as mãos, não importava o grau de sujeira ou culpa
que elas tinham.
Sempre me impressionou o fato
de Pilatos ter lavado as mãos após
ter condenado um inocente a morrer na cruz. Parece que não adiantou
muito; ao longo de 2.000 anos, os
cristãos repetem em todas as partes
do mundo que alguém "padeceu sob
o poder de Pôncio Pilatos".
Lembro uma passagem de Cyrano
de Bergerac que fez, como sempre
gostava de fazer, uma coisa extravagante, desafiadora dos valores de
sua época. Um amigo reclamou:
"Cyrano, isso é uma loucura!". E
ele respondeu: "Sim. Mas que
gesto!"
Ao publicar "Pilatos", devo ter feito uma loucura da qual não me arrependo. Nem poderia me consolar
com a desculpa de Cyrano de Ber-
gerac, dizendo: "Mas que gesto!".
Gesto inútil, como todos os gestos
dos quais não se guardam lição nem
memória.
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