São Paulo, sexta-feira, 01 de junho de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Em busca de mãos limpas

Queria lavar as mãos de tudo o que fiz, do nascimento involuntário ao voluntário ceticismo

OUTRO DIA, após almoço com amigo que não via havia muito, ele me perguntou, de repente, cortando a conversa que até aquele momento era sobre os recentes e recorrentes escândalos de nossa vida pública: "Por que diabos você deu o nome de "Pilatos" a um romance que nada tem a ver com o Pilatos?"
Nunca me haviam feito essa pergunta. Afinal, Pilatos entrou no credo sem ter nada o que fazer ali, não é dogma de fé nem de moral de nenhuma religião. A expressão "entrou como Pilatos no credo" é antiga e usada para fazer referência a uma pessoa ou coisa que nada tem a ver com o assunto em pauta.
Eu podia alegar exatamente isso, Pilatos era título do romance do mesmo modo pelo qual entrara no credo. Seria meia verdade, não fosse a epígrafe que coloquei na página de rosto, citação do samba erudito de Paulo Vanzolini: "E assim me rendi ante a força dos fatos: lavei as minhas mãos como Pôncio Pilatos".
Na realidade, eu queria lavar as mãos de tudo o que fizeram por aí, as guerras púnicas, os dez mandamentos, o rapto das Sabinas, a Idade Média, a política ambiental, a Reforma, a Contra-Reforma, o estilo gótico, o terremoto de Lisboa, a queda da Bastilha, a revolta do couraçado Potemkim, a Dieta de Worms (nem sei bem o que é isso), a Confederação do Equador, a Jovem Guarda, as dez mais do finado Ibrahim Sued.
Mas, principalmente, lavar as mãos de tudo o que fiz pela vida afora, desde o nascimento involuntário até o voluntário ceticismo que não acredita nem mesmo na eficiente lavagem das mãos. Sempre resta uma sujeira qualquer, da qual ninguém consegue se limpar.
No caso do romance, onde realmente Pilatos não é mencionado nem sequer uma vez, a lavagem das mãos é tanto quanto possível completa. Moral, literatura, bom gosto, boas intenções, lógica, artes em geral, homens, mulheres e crianças, amor, sexo, patriotismo, cultura, progresso, dinheiro, tudo o que existe de bom ou de mau na condição humana é avaliado por um pobre diabo castrado que atravessa diversos episódios de uma época (início dos anos 70) mas sem se comprometer com nada, alcançando quase sem querer uma espécie de bem-aventurança miserável que não o satisfaz, mas o impede de cair no desespero.
Bem, eu já havia publicado oito romances e, bem ou mal, ia levando, mas sentia necessidade de uma espécie de fala do trono, um trono imaginário, sem súditos, pela qual eu me expressasse sem regras nem conveniências. Não seria um desabafo, uma catarse, nem mesmo um vômito. Não seria nada: seria eu, o que dá na mesma.
Usei como impreciso pano de fundo a situação nacional do Brasil naquele tempo, quando todos éramos mais ou menos castrados. Mas o romance nada tem de política; pelo contrário, é de uma alienação radical, atroz.
De tal forma que, depois de publicá-lo, em 1972, perdi vontade e interesse em escrever ficção, passei 23 anos sem pisar numa livraria, sem tomar conhecimento das novidades no campo da arte e da lite- ratura, fiz infinitas coisas que nunca fizera, descobri tardiamente que o homem feliz não escreve livros nem se dedica às artes -muletas em que alguns, gênios ou não gênios, se escoram para suportar a condição humana.
Isso não quer dizer que fui integralmente feliz nessa fase, mas cheguei perto, chutei na trave. Mais um pouco e teria chegado lá. Para todos os efeitos, eu lavara as mãos, não importava o grau de sujeira ou culpa que elas tinham.
Sempre me impressionou o fato de Pilatos ter lavado as mãos após ter condenado um inocente a morrer na cruz. Parece que não adiantou muito; ao longo de 2.000 anos, os cristãos repetem em todas as partes do mundo que alguém "padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos".
Lembro uma passagem de Cyrano de Bergerac que fez, como sempre gostava de fazer, uma coisa extravagante, desafiadora dos valores de sua época. Um amigo reclamou: "Cyrano, isso é uma loucura!". E ele respondeu: "Sim. Mas que gesto!"
Ao publicar "Pilatos", devo ter feito uma loucura da qual não me arrependo. Nem poderia me consolar com a desculpa de Cyrano de Ber- gerac, dizendo: "Mas que gesto!". Gesto inútil, como todos os gestos dos quais não se guardam lição nem memória.


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