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ERUDITO/CRÍTICA
Loucuras e desmesuras do barroco italiano com Il Giardino Armonico
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Para quem não for especialista em retórica barroca italiana, o nome do conjunto, Il Giardino Armonico, pode sugerir algo
delicado e adocicado. Bastaria o
primeiro compasso do primeiro
solo do "spalla" Enrico Onofri, tocando o "Concerto em Ré Maior"
("Grão-Mogol"), de Vivaldi
(1678-1741), anteontem no Cultura Artística, para lhe fazer mudar
de opinião.
Ele saiu serrando a quarta corda
como um Gengis Khan, tirando
um som rouco e louco, muito longe de adocicado e delicado. E a
coisa não parava. Teve gente procurando a mesa de som, para entender o que era aquilo. Mas aquilo era Vivaldi, mesmo, tocado
com gana por um dos conjuntos
mais raçudos da música antiga.
Quando parou, o contraste era
positivamente barroco. De louco
e rouco a... delicado e adocicado.
Depois insinuante. Depois sonhador. Depois entusiasmado. No intervalo, um conhecido psicanalista e melômano veio comentar que
achara a interpretação muito romântica. "Mas isso é o barroco",
respondeu um violinista profissional, poupando o crítico da explicação. Isso é o barroco -especialmente o barroco do Giardino
Armonico, que faz pensar em
Tintoretto e El Greco mais do que
em Rafael.
No caso de "Il Pianto di Arianna" (o pranto de Ariana), de Pietro Locatelli (1695-1764), o que já
era incrivelmente dramático foi
ficando dramaticamente incrível,
à medida que Teseu confirmava
seu caráter e Ariana desmontava.
Seu "devaneio de idéias" definia
um dos roteiros da paixão, com
lentas, excruciantes dissonâncias
entrecortadas por longos, excruciantes silêncios. E os trinados da
"declaração desesperada", no fim,
lacravam com fúria esse teatro
musical.
Tocando juntos desde 1985,
com várias formações, e sob a direção de Giovanni Antonini desde 1989, o grupo está devidamente consagrado, mundo afora, como expoente da interpretação
barroca. Gravaram dezenas de
discos, incluindo um Vivaldi
"best-seller" com a cantora Cecilia Bartoli. Dessa vez, vieram com
11 cordas, mais fagote e cravo. Fazem tudo com alegria, espontaneamente clara nos sorrisos e
conversas entre uma peça e outra.
Antonini é também um virtuose
da flauta doce. Em 2001, quando
estiveram em São Paulo, ele fez
um dos concertos de Vivaldi para
"flautino" e orquestra (popular
no século 17, o "flautino" é o "piccolo" das flautas doces). Agora tocou o outro. Aqui, como no "Concerto para 4 Violinos e Orquestra"
e ainda mais no "Grão-Mogol",
Vivaldi faz malabarismos melódicos e harmônicos, com modulações aberratórias, uso expressivo
de intervalos incomuns e síncopas importadas da Lombardia (e
dos países eslavos). É o tipo de
coisa que Antonini, Onofri e seus
parceiros gostam de tocar.
Adaptado sem exagero, faz
muito bem, também, ao anglo-germano Händel (1685-1759), de
quem o Giardino tocou um "Concerto Grosso" (em si menor, op.
6/12), na primeira parte. A separação espacial entre primeiros e segundos violinos beneficia -beneficia, não, revela, ou inventa engenhosos efeitos estereofônicos,
impossíveis quando os naipes ficam lado a lado. Vale o mesmo
para os solos dos "spallas" no lindo "Minueto" que fecha o "Concerto Grosso", op. 5/4, de Giuseppe Sammartini (1695-1750).
Um concerto desses é uma alegria, no meio da correria. Ilumina
e sombreia o espírito, com energia e humor. Recarrega a vida de
vida e deixa a gente feliz uma semana -louco, rouco, entusiasmado, delicado, até adocicado.
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