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FERNANDO GABEIRA
A Copa e o resto da realidade
Nos intervalos, cuidamos da venda superfaturada de ambulâncias e tentamos proteger um ministério
EM 68 , após o AI-5, aprendemos
o que é tentar fazer as coisas
antes do Natal. A Copa acontece de quatro em quatro anos, talvez por isso ainda me engane. Desta
vez, foi agravada com o colapso da
Varig e um certo caos nos aeroportos. Na espera em Brasília, um advogado me contava como se sentiu
inoportuno ao tentar falar com o
cliente. Não tenho cabeça hoje, a não
ser para o jogo, disse a voz do outro
lado do telefone.
Meu problema era outro. O motorista que iria me levar para casa queria ver o jogo. O vôo atrasou. Ele gosta de ouvir os hinos e talvez hoje não
consiga, disse eu.
Essa sensação de inconveniência
ao tentar trabalhar normalmente
revela-se também em outros campos. Como programar reuniões,
compatibilizar agendas nos intervalos da tabela da Copa com gente que
depende de hora de vôo e, alguns, até
de festas juninas?
Entre um gol e outro, um hino nacional e outro, posso pensar em futebol e nações, com sua costura simbólica. Posso admirar o hino do México, o único que além de matar e
destruir todos os inimigos, em caso
de ataque, deseja que tenham um
túmulo honrado.
A Copa nos traz algo que deveríamos aprender com o Réveillon: a
proteção dos bichos domésticos,
apavorados com os fogos de artifício.
Alguns tremem durante horas, escondem-se nos lugares mais recônditos da casa. Há os que gostam e vão
para a varanda, festejar. Na próxima,
vou preparar para uma gata aqueles
protetores de silicone que usamos
na natação. São feitos sob medida e
talvez resolvam o problema.
O Brasil já vencia de 4 a 1 do Japão,
e o comentarista lembrava-se da vitória da Argentina, como que desejando seis. Instalou-se a divisão: seria ótimo ver o Brasil golear. Mas a
gata não agüentaria mais dois gols.
Já estava quase liquidada quando
aconteceu o terceiro.
É preciso esperar a Copa, a ressaca
da vitória ou da derrota, para fazer
avançar um tema.
Recebi nesta semana um ensaio
do "Jornal Britânico de Medicina"
mostrando como a corrupção no setor de saúde está presente em muitos países. Sua características, multiplicidade de agentes (hospitais,
médicos, fornecedores), tornam o
controle muito difícil. A estratégia
para atenuar esse problema, quase
universal, é a transparência.
Nos intervalos da Copa, cuidamos
da venda superfaturada de ambulâncias. Mais de mil foram vendidas,
irrigando contas de deputados, prefeitos. Com os documentos existentes, é possível apontar os responsáveis em pouco tempo. Isso será feito.
Fica no ar a pergunta: e daí para a
frente, como proteger um ministério por onde passam R$ 35 bilhões?
Só uma estratégia de transparência
e investimento em controles podem
conter a sangria.
Vamos deixar a Copa do Mundo
passar, ver para que lado vão as coisas. O Brasil pode ir para trás, tornando o centro desses recursos um
feudo de um partido político ou
avançar rumo à preocupação internacional de proteger o setor de saúde da rapina política.
Digo isso, porque, na sombra da
Copa, esgueirando-se por uma ou
outra nota de jornal, aparece a discussão sobre um novo ministro da
Saúde. Imagino que o governo não
tenha cabeça para resolver isso em
meio à Copa. Cedo ou tarde, o tema
vai emergir como uma espécie de
termômetro dos novos tempos. E
mostrar o lado dos principais atores.
Já temos maturidade política, instrumentos tecnológicos, recursos
para ampliar o controle, para não
acordarmos sobressaltados com
morcegos, sanguessugas e outros
nomes de operação da Polícia Federal. Esse horror está ao alcance da
mão, podemos reduzi-lo.
O trabalho da Procuradoria, Polícia Federal e Controladoria da
União desmontando a quadrilha dos
sanguessugas é um gol no jogo contra escândalos na saúde nas últimas
décadas.
A tarefa é subir humildemente
nos seus ombros, olhar um pouco
adiante, colocar de pé os instrumentos para atacar o problema. São instrumentos políticos, mudanças na
regra do jogo, transparência, que podem realizar o trabalho que não fazem as lições de moral.
Por enquanto, é esperar, torcer
por um Brasil sem laterais velozes,
com um ataque pesado. A gata adora
essa formação.
Imagino que outras idéias estejam
sendo gestadas na sombra da Copa.
Podem ser atropeladas por um desses fatos extraordinários que não
param de acontecer no Brasil. Sobrecarregados de cartões amarelos,
os políticos não poderão escapar de
dois temas: corrupção e segurança
pública.
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