São Paulo, sábado, 01 de julho de 2006

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FERNANDO GABEIRA

A Copa e o resto da realidade

Nos intervalos, cuidamos da venda superfaturada de ambulâncias e tentamos proteger um ministério

EM 68 , após o AI-5, aprendemos o que é tentar fazer as coisas antes do Natal. A Copa acontece de quatro em quatro anos, talvez por isso ainda me engane. Desta vez, foi agravada com o colapso da Varig e um certo caos nos aeroportos. Na espera em Brasília, um advogado me contava como se sentiu inoportuno ao tentar falar com o cliente. Não tenho cabeça hoje, a não ser para o jogo, disse a voz do outro lado do telefone.
Meu problema era outro. O motorista que iria me levar para casa queria ver o jogo. O vôo atrasou. Ele gosta de ouvir os hinos e talvez hoje não consiga, disse eu.
Essa sensação de inconveniência ao tentar trabalhar normalmente revela-se também em outros campos. Como programar reuniões, compatibilizar agendas nos intervalos da tabela da Copa com gente que depende de hora de vôo e, alguns, até de festas juninas?
Entre um gol e outro, um hino nacional e outro, posso pensar em futebol e nações, com sua costura simbólica. Posso admirar o hino do México, o único que além de matar e destruir todos os inimigos, em caso de ataque, deseja que tenham um túmulo honrado.
A Copa nos traz algo que deveríamos aprender com o Réveillon: a proteção dos bichos domésticos, apavorados com os fogos de artifício. Alguns tremem durante horas, escondem-se nos lugares mais recônditos da casa. Há os que gostam e vão para a varanda, festejar. Na próxima, vou preparar para uma gata aqueles protetores de silicone que usamos na natação. São feitos sob medida e talvez resolvam o problema.
O Brasil já vencia de 4 a 1 do Japão, e o comentarista lembrava-se da vitória da Argentina, como que desejando seis. Instalou-se a divisão: seria ótimo ver o Brasil golear. Mas a gata não agüentaria mais dois gols. Já estava quase liquidada quando aconteceu o terceiro.
É preciso esperar a Copa, a ressaca da vitória ou da derrota, para fazer avançar um tema.
Recebi nesta semana um ensaio do "Jornal Britânico de Medicina" mostrando como a corrupção no setor de saúde está presente em muitos países. Sua características, multiplicidade de agentes (hospitais, médicos, fornecedores), tornam o controle muito difícil. A estratégia para atenuar esse problema, quase universal, é a transparência.
Nos intervalos da Copa, cuidamos da venda superfaturada de ambulâncias. Mais de mil foram vendidas, irrigando contas de deputados, prefeitos. Com os documentos existentes, é possível apontar os responsáveis em pouco tempo. Isso será feito.
Fica no ar a pergunta: e daí para a frente, como proteger um ministério por onde passam R$ 35 bilhões? Só uma estratégia de transparência e investimento em controles podem conter a sangria.
Vamos deixar a Copa do Mundo passar, ver para que lado vão as coisas. O Brasil pode ir para trás, tornando o centro desses recursos um feudo de um partido político ou avançar rumo à preocupação internacional de proteger o setor de saúde da rapina política.
Digo isso, porque, na sombra da Copa, esgueirando-se por uma ou outra nota de jornal, aparece a discussão sobre um novo ministro da Saúde. Imagino que o governo não tenha cabeça para resolver isso em meio à Copa. Cedo ou tarde, o tema vai emergir como uma espécie de termômetro dos novos tempos. E mostrar o lado dos principais atores.
Já temos maturidade política, instrumentos tecnológicos, recursos para ampliar o controle, para não acordarmos sobressaltados com morcegos, sanguessugas e outros nomes de operação da Polícia Federal. Esse horror está ao alcance da mão, podemos reduzi-lo.
O trabalho da Procuradoria, Polícia Federal e Controladoria da União desmontando a quadrilha dos sanguessugas é um gol no jogo contra escândalos na saúde nas últimas décadas.
A tarefa é subir humildemente nos seus ombros, olhar um pouco adiante, colocar de pé os instrumentos para atacar o problema. São instrumentos políticos, mudanças na regra do jogo, transparência, que podem realizar o trabalho que não fazem as lições de moral.
Por enquanto, é esperar, torcer por um Brasil sem laterais velozes, com um ataque pesado. A gata adora essa formação.
Imagino que outras idéias estejam sendo gestadas na sombra da Copa. Podem ser atropeladas por um desses fatos extraordinários que não param de acontecer no Brasil. Sobrecarregados de cartões amarelos, os políticos não poderão escapar de dois temas: corrupção e segurança pública.


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