São Paulo, quarta, 1 de julho de 1998

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Na era da propaganda, todo candidato é mentiroso

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

A idéia de que os candidatos são vendidos como sabonetes é sem dúvida um clichê. Mas fico na dúvida se estamos escolhendo entre determinadas personalidades políticas ou entre marketeiros, como Duda Mendonça ou Chico Malfitani. Será que o melhor candidato, no fundo, é aquele capaz de inspirar a melhor propaganda?
Lendo a edição da Folha de domingo, fiquei com a impressão de que sim. O eleitorado procura, segundo o jornal, um misto de Lula e FHC. Estabilidade monetária com preocupação pelo social.
Nada de surpreendente nessa notícia. Em primeiro lugar, porque é óbvio que nenhum de nós quer a volta da inflação. Além disso, todos sabemos que FHC despreza um pouco o social. Em terceiro lugar, o eleitorado se divide entre os que desprezam o social e os que se preocupam com o tema. De modo que, na média, tanto FHC quanto Lula estão certíssimos no que dizem.
Esse poder da "média" é um pouco assustador. Faz com que todos os candidatos se dirijam rumo ao centro. O centro é esse lugar do bom senso, que quer pleno emprego e inflação zero, escolas e energia atômica, a cura da Aids e a preservação da floresta amazônica.
Para ser um pouco weberiano, como gosta FHC, observo que o "centro" pode ser o ponto para onde convergem valores, mas não é o ponto onde os meios se encontram. Ou seja, o discurso pode agradar a todos, mas a prática envolve decisões radicais.
Todos queremos a modernização do país (essa mistura de cartões de crédito com carros importados e redes de lanchonetes), mas desejamos também o fim do desemprego. Obviamente são dois objetivos contraditórios. Os carros melhores trazem desemprego; os cartões de crédito internacionais exigem reservas cambiais, estas exigem câmbio supervalorizado e juros internos altos... Que sei eu? Não sou economista.
Só conheço a atitude psicológica da classe média brasileira, que quer tudo pelo social, desde que sem sacrifícios. "Classe média", aqui, é eufemismo. Pois, num país que ostenta a maior desigualdade de renda do planeta, todo privilégio surge como necessidade mínima, todo direito é privilégio, e todo sacrifício é abuso.
Ou seja, tenho direito a meus cartões de crédito internacionais! Eu, como consumidor, não posso ser desrespeitado e compro um carro coreano. Cada aumento de imposto será mais do que um roubo, será um atentado a meu direito de entrar na modernidade.
De modo que a suposta "classe média" passa a entender como direitos tudo aquilo que compõe o seu vasto rol de privilégios. Ao mesmo tempo, angustia-se com o "social".
No lado oposto, o lado do "social", há todo um discurso em torno dos direitos. Direito ao trabalho, direito à terra etc. Como tudo está muito bem consolidado no Brasil, esses direitos surgem como usurpações. O direito à terra se torna invasão de propriedade. Toda reivindicação pública se torna corporativa. O famoso "grito dos excluídos" parece ser mais uma defesa de privilégios do que uma reivindicação de direitos, já que só temos ouvidos para o que é privilégio.
Nesse misto de culpa e de acusação, desenvolve-se a campanha eleitoral. Nega tudo o que foi dito acima, já que procura a conciliação e o "bom senso". Obviamente o bom senso é governista. Obviamente todo candidato oposicionista terá de dizer que, a despeito de tantos rumores, o caos será evitado.
De modo que a idéia de mudança -imediatamente associada com o caos- vai sendo exorcizada por todos. Mas, se o importante é tranquilizar o investidor estrangeiro e dizer que Lula não é o diabo que estão pintando, por que não votar de novo em FHC?
Cria-se, com a propaganda eleitoral, uma "média" perversa. Essa "média" praticamente obriga cada candidato a trair seus compromissos de campanha. Um deles será menos "social" do que prometeu, o outro será menos incendiário do que imaginam. Incendiário? Não. Será menos crítico do que pensamos.
O resultado das campanhas de marketing político pode beneficiar a um ou a outro dos candidatos, mas destrói claramente a credibilidade do sistema político. Como o princípio de toda publicidade moderna é a ironia, o distanciamento brechtiano, celebra-se a mentira como mecanismo válido para a ascensão ao poder. Depois, são outros quinhentos...
O resultado é que cada eleição passa menos a representar uma decisão séria, uma opção entre diferentes modos de vida, uma cisão entre direitos e sacrifícios, entre usurpações e benefícios, do que uma perfumaria na qual os valores e os meios para atingi-los se conciliam magicamente. Trata-se de agir "pela média", de contentar todo mundo.
Como é impossível contentar todo mundo, o esforço de cada candidato será o de moderar aqueles a quem representa. Será o de ser um traidor. Traidor nobre e lúcido (o caso de FHC) ou traidor trágico, hamletiano, perseguido (o caso de Lula). A propaganda rege o debate político. Ignora o tema da ruptura, da excentricidade, da verdade. Na média das opiniões, aposta na mentira geral. Não tem importância. Qualquer um, se for eleito, poderá dizer em rede nacional que não traiu seus compromissos.



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