São Paulo, quarta-feira, 01 de agosto de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Morrer na praia


"Na Praia", de Ian McEwan, é a história de um duplo suicídio, que só o orgulho e a vergonha podem explicar


UNS ANOS atrás, George Steiner passou por Lisboa e, meio a sério, meio a brincar, informou o auditório que Shakespeare, se fosse vivo, estaria a escrever telenovelas. Os críticos locais riram da provocação, mas a frase não era provocatória: a tragédia é prerrogativa de tempos aristocráticos.
Na era democrática, onde diferenças de classe não desempenham papel fulcral, a tragédia acabou. Ou, se preferirem, emigrou para dentro de quatro paredes: para o íntimo mais íntimo de famílias anônimas ou de anônimos amantes, que se encontram e confrontam em dramas pessoais. Ingmar Bergman, morto esta semana, filmou como poucos esses momentos de intimidade, em que a tragédia é reduzida a palavras, gestos e rostos de famílias ou casais.
Bergman é um caso. Ian McEwan é outro. Falo de "Na Praia" (Companhia das Letras), a última novela de McEwan e uma pequena obra-prima da ficção contemporânea. A história, como as melhores histórias de Turgenev, é de assustadora banalidade: Edward e Florence amam-se, casam e, virgens como vieram ao mundo, jantam na noite nupcial. Cenário: um hotel na costa inglesa de Dorset. Ano: 1962. Não é por acaso: Philip Larkin dizia que o sexo começou em 63. Larkin falava da "revolução sexual" que transformaria o medo e a ignorância de Edward e Florence em relíquias pré-históricas.
Mas o ano, repito, é 1962. Edward teme a primeira noite por temer que ela termine demasiado rápido. O medo de Florence é de natureza diferente: Florence teme a mera possibilidade de a noite começar. O sexo é um animal estranho, como alguém diria. Para Florence, um animal estranho e visceral.
O que acontece no quarto seria motivo, hoje, para um riso envergonhado entre dois amantes. Mas não para Florence e Edward. E não para a Inglaterra de 62. O que acontece ganha os contornos de uma tragédia clássica, a que a ignorância de ambos confere um peso sepulcral.
McEwan é magistral na descrição do ato, ou no fracasso do ato, emprestando aos escritores vindouros a lição maior: quando se escreve sobre sexo, nunca se escreve sobre sexo. Mas a alma da novela está no confronto dos dois nas areias da praia. Estive em Dorset duas ou três vezes e, relendo o diálogo dos esposos depois do fracasso, não conheço cenário melhor para a mais funesta das despedidas românticas. Existe em Dorset a brisa gelada que normalmente acompanha os suicidas.
Suicidas? Precisamente. "Na Praia" não é, ao contrário do que seria de esperar em McEwan, uma história macabra sobre os abismos do desejo e do sexo. O sexo não passa de um pretexto. "Na Praia" é a história de um duplo e espiritual suicídio, que só o orgulho e a vergonha podem explicar.
Porque as tragédias, as tragédias de hoje, já não se fazem com famílias aristocráticas que convidam a atos desesperados e radicais. As tragédias, as tragédias de hoje, acontecem em silêncio, em privado. E, mais do que histórias de ação, elas são retratos de inação: acontecem quando nada se faz e os amantes se afastam, como num poema de Auden, cada qual em direção ao seu próprio erro.


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