São Paulo, sábado, 01 de outubro de 2005

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Argentino "lacônico" ganha tradução

JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

Um homem de barba e cabelos desgrenhados, numa noite parda de Mendoza, na Argentina, é conduzido por mãos bruscas a porões em que imperam os gritos e a dor. Não é uma data qualquer, perdida nos porões semelhantes do esquecimento ou em páginas amarelecidas de qualquer livro antigo: trata-se da precisa noite em que se instaurou o golpe militar no país, em março de 1976.
O homem, que vasculha com minúcia e terror a própria memória apenas para descobrir que jamais compreenderá por que está sendo preso, apresenta-se: Antonio Di Benedetto. Um escritor argentino que nesse momento conta 53 produtivos anos de idade, sendo já autor de uma série de livros bastante apreciados, mas só pela crítica e por outros escritores. Dele, chegam ao Brasil, agora e nos próximos meses, três importantes romances a serem lançados pela editora Globo: "Os Suicidas", já nas livrarias, "El Silenciero" e "Zama", sua obra principal.
Torturado, enclausurado por mais de um ano e em seguida exilado, esse homem jamais voltará a escrever com o mesmo afinco que dedicava à tarefa nos anos 50 e 60, quando produziu tais livros. Morrerá em 1986, sem grandes homenagens ou comoções. Sua obra já escrita, no entanto, embora transite por vias vicinais às da literatura preponderante na época, já terá deixado marca.
Di Benedetto, a princípio, passará a ser procurado mais pelo ímpeto transgressor dos leitores ávidos por livros censurados -ainda que por si sós eles pouco tivessem de consensualmente subversivos. Mais tarde, será retomado por uma nova geração de escritores, de Juan José Saer e Ricardo Piglia, posteriores ao chamado boom da literatura latino-americana. Por fim, alçado à subjetiva condição de grande autor.
No processo, amealhará reinterpretações de seus livros e de seu papel naqueles fornidos anos da literatura em língua espanhola, abundantes em obras de Julio Cortázar ou Gabriel García Márquez. "É uma figura que surge num entretempo, que tem um estilo e um projeto criador muito próprios, que pouco ou nada têm a ver com a narrativa hegemônica da época, tomada pelo realismo mágico e pelas narrativas fantásticas", explica a professora da USP Ana Cecília Olmos, que organiza a nova publicação.
Luis Gusmán, um dos principais escritores dessa nova geração que retoma Di Benedetto, autor do prefácio para a edição brasileira de "Os Suicidas", irá completar as palavras de Olmos: "Sempre preferi chamar a obra de Di Benedetto de "intersticial" em vez de "marginal", pois seus livros se conectam com o resto da literatura argentina e modificam o campo em que intervêm", diz. E acrescenta, em sutil crítica aos autores altamente comercializados do boom dos anos 1960: "Sua obra atua a partir das sombras para iluminar a literatura a cada vez que, ao se institucionalizar, esta se converte em "terra de ninguém'".
Mas quais as características dessa obra que Saer se atreveu a classificar como "a mais original do século 20"? Dos três livros a serem encontrados no Brasil, pode-se identificar em comum "uma escrita lacônica, breve, que aposta no silêncio e na elipse", nas palavras de Olmos.
Quanto a enredos, contudo, as semelhanças são esparsas. Enquanto o primeiro nos oferece uma narrativa ágil e repleta de ações, em um sem-número de referências e histórias relacionadas ao suicídio, o segundo se concentra na interioridade do personagem, de modo até "solipsista", ainda segundo Olmos. "Zama", por fim, é o mais complexo dos romances. Nele, de enredo transcorrido em fins de século 18, Di Benedetto realiza um trabalho de simultânea recriação e paródia da linguagem da época, sem prejuízo para a mostra do "desamparo e da espera que angustia" seus personagens, de acordo com Gusmán.
É nos personagens que se retomam semelhanças. Em "Os Suicidas", de modo explícito, há um protagonista seduzido pela idéia da morte, mas também nos outros, diz Olmos, "os personagens estão marcados por um desapego à vida, carecendo de euforia vital". Semelhante aos personagens, talvez, pode ter se tornado o sujeito cujos cabelos desgrenhados aos poucos se tornaram grisalhos.


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