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NELSON ASCHER
Diga-me o que comes
A culinária paulistana vem melhorando,
seja em qualidade, seja em variedade
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SOMOS, DE acordo com o que dizem, o que comemos. Será?
Então o lobo é um rebanho de
ovelhas concentrado e a raposa, um
extrato de galinheiro. Quanto aos
paulistanos, somos mais do que éramos dez anos atrás, há dez anos já
éramos mais do que há 20 e assim
por diante, passado adentro.
Pois todos os manifestantes do
mundo podem reclamar à vontade
do capitalismo e todos os adolescentes de qualquer idade se insurgir
contra a sociedade de consumo, mas
a verdade é que, onde inexistam ou
funcionem mal, não se acha sequer a
salada verde dos militantes idem.
Afinal, antes da virada dos anos
80/90, os supermercados soviéticos
ofereciam apenas vodca e pepino
em conserva, algo que se aplicava
mais ou menos ao resto do bloco.
Quem quisesse 100 g de carne sem
passar dois dias na fila durante o inverno russo ou polonês precisava,
no mínimo, mostrar a carteirinha do
comitê central.
A doutrina obsoleta da substituição das importações funcionou no
Brasil da ditadura militar como uma
imitação do sistema soviético. Parece, e não é brincadeira, que alguém
acreditava na possibilidade de que o
Brasil um dia produziria uísque de
verdade e, enquanto isso não acontecia, muitos arruinavam definitivamente seus fígados com substitutos
hoje inimagináveis. Esperar, portanto, por um brie ou um pecorino
nacional, deixando de importá-los
dos países de origem, reflete uma
mentalidade igualmente utópica.
Apesar de obstáculos tais (vale a
pena lembrar que não foram poucas
as medidas econômicas da ditadura
que mereceram, embora sem muito
alarde, a aprovação dos companheiros, e isso incluía quanto cheirasse a
nacionalismo econômico e/ou punição da classe média), desde que comecei a apreciar comida (meu primeiro prato favorito foi o mingau de
Maizena), a culinária paulistana tem
melhorado incessantemente, seja
em qualidade, seja em variedade.
Convém fazer duas observações.
Pertenço a uma geração que comia
quase de tudo melhor em casa. A
meus pais não teria ocorrido me levarem para comer, digamos, uma
banal milanesa ou um trivial arroz
com feijão em algum restaurante.
Saía-se ou para comer o que era difícil cozinhar em casa, ou porque era
fim de semana, ou para festejar algo.
Daí que, até onde vai minha memória, meus conterrâneos e contemporâneos iam ou a algum lugar comer
feijoada nos sábados (pois somente
vale a pena fazê-la em casa quando a
família é grande ou os convivas numerosos), ou a uma churrascaria no
domingo e, ocasionalmente, a esta
ou aquela cantina. Além disso, eu
mesmo cresci numa casa na qual se
alternavam maravilhosamente as
cozinhas húngara, italiana e paulista-mineira.
Comer fora era, nos anos 60, muito mais um hábito carioca do que
nosso e não é à toa que todos os melhores restaurantes do país ficavam
lá. Levou mais uma década ainda para que alcançássemos a antiga capital. Mas isso não ocorreu de uma
vez. Por exemplo, até no âmbito do
churrasco, São Paulo era limitada. A
variedade de carnes era exígua e se
restringia a filé mignon, chuleta, bisteca, lombo. Os acompanhamentos
eram fritas e farofa. Tivemos de esperar até os anos 70 para que outros
cortes, como a picanha, se popularizassem nas novas churrascarias chiques, enquanto que os autênticos
espetos corridos não se difundiram
aqui antes dos anos 80.
O que se achava em nossas cantinas tampouco era muito superior à
comida italiana do Rio -e isso não é
dizer pouco. Ia-se a uma cantina sobretudo pelo preço e o que se encontrava nela eram massas industriais,
molhos não melhores que os enlatados e muito óleo. Cozinha italiana de
luxo, antes da década de 90, restringia-se a um ou dois restaurantes caríssimos. De resto, havia um ou outro bom restaurante francês, um
bom húngaro e não muito mais. Os
ainda raros apreciadores de guardanapos cozidos e peixe cru (a cozinha
japonesa), freqüentavam, 30 anos
atrás, a Liberdade.
Caso um dia alguém quisesse fazer um breve levantamento do que,
durante o último meio século, mudou nos hábitos alimentares paulistanos, eu lhe recomendaria começar
por uma cronologia das sobremesas
que já foram moda. Os anos 60, talvez graças às batedeiras, foram os
anos do morango com chantilly
(prato favorito de candidata a miss,
como se dizia). A mousse de chocolate foi campeã no começo dos anos
70 e, pouco depois, foi a vez do creme de papaya. Por alguma razão, as
panquecas (ou crepes), que tentam
conquistar um lugar no mercado há
quase 30 anos, jamais conseguiram
se enraizar. Hoje em dia, ao que parece, o que está em moda é o tal do
petit gateau. Se o ritmo das mudanças continuar assim, uma coisa é
certa: no futuro será ainda mais difícil se manter magro em São Paulo.
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