São Paulo, segunda-feira, 01 de outubro de 2007

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NELSON ASCHER

Diga-me o que comes


A culinária paulistana vem melhorando, seja em qualidade, seja em variedade

SOMOS, DE acordo com o que dizem, o que comemos. Será? Então o lobo é um rebanho de ovelhas concentrado e a raposa, um extrato de galinheiro. Quanto aos paulistanos, somos mais do que éramos dez anos atrás, há dez anos já éramos mais do que há 20 e assim por diante, passado adentro.
Pois todos os manifestantes do mundo podem reclamar à vontade do capitalismo e todos os adolescentes de qualquer idade se insurgir contra a sociedade de consumo, mas a verdade é que, onde inexistam ou funcionem mal, não se acha sequer a salada verde dos militantes idem.
Afinal, antes da virada dos anos 80/90, os supermercados soviéticos ofereciam apenas vodca e pepino em conserva, algo que se aplicava mais ou menos ao resto do bloco. Quem quisesse 100 g de carne sem passar dois dias na fila durante o inverno russo ou polonês precisava, no mínimo, mostrar a carteirinha do comitê central.
A doutrina obsoleta da substituição das importações funcionou no Brasil da ditadura militar como uma imitação do sistema soviético. Parece, e não é brincadeira, que alguém acreditava na possibilidade de que o Brasil um dia produziria uísque de verdade e, enquanto isso não acontecia, muitos arruinavam definitivamente seus fígados com substitutos hoje inimagináveis. Esperar, portanto, por um brie ou um pecorino nacional, deixando de importá-los dos países de origem, reflete uma mentalidade igualmente utópica.
Apesar de obstáculos tais (vale a pena lembrar que não foram poucas as medidas econômicas da ditadura que mereceram, embora sem muito alarde, a aprovação dos companheiros, e isso incluía quanto cheirasse a nacionalismo econômico e/ou punição da classe média), desde que comecei a apreciar comida (meu primeiro prato favorito foi o mingau de Maizena), a culinária paulistana tem melhorado incessantemente, seja em qualidade, seja em variedade.
Convém fazer duas observações. Pertenço a uma geração que comia quase de tudo melhor em casa. A meus pais não teria ocorrido me levarem para comer, digamos, uma banal milanesa ou um trivial arroz com feijão em algum restaurante. Saía-se ou para comer o que era difícil cozinhar em casa, ou porque era fim de semana, ou para festejar algo. Daí que, até onde vai minha memória, meus conterrâneos e contemporâneos iam ou a algum lugar comer feijoada nos sábados (pois somente vale a pena fazê-la em casa quando a família é grande ou os convivas numerosos), ou a uma churrascaria no domingo e, ocasionalmente, a esta ou aquela cantina. Além disso, eu mesmo cresci numa casa na qual se alternavam maravilhosamente as cozinhas húngara, italiana e paulista-mineira.
Comer fora era, nos anos 60, muito mais um hábito carioca do que nosso e não é à toa que todos os melhores restaurantes do país ficavam lá. Levou mais uma década ainda para que alcançássemos a antiga capital. Mas isso não ocorreu de uma vez. Por exemplo, até no âmbito do churrasco, São Paulo era limitada. A variedade de carnes era exígua e se restringia a filé mignon, chuleta, bisteca, lombo. Os acompanhamentos eram fritas e farofa. Tivemos de esperar até os anos 70 para que outros cortes, como a picanha, se popularizassem nas novas churrascarias chiques, enquanto que os autênticos espetos corridos não se difundiram aqui antes dos anos 80.
O que se achava em nossas cantinas tampouco era muito superior à comida italiana do Rio -e isso não é dizer pouco. Ia-se a uma cantina sobretudo pelo preço e o que se encontrava nela eram massas industriais, molhos não melhores que os enlatados e muito óleo. Cozinha italiana de luxo, antes da década de 90, restringia-se a um ou dois restaurantes caríssimos. De resto, havia um ou outro bom restaurante francês, um bom húngaro e não muito mais. Os ainda raros apreciadores de guardanapos cozidos e peixe cru (a cozinha japonesa), freqüentavam, 30 anos atrás, a Liberdade.
Caso um dia alguém quisesse fazer um breve levantamento do que, durante o último meio século, mudou nos hábitos alimentares paulistanos, eu lhe recomendaria começar por uma cronologia das sobremesas que já foram moda. Os anos 60, talvez graças às batedeiras, foram os anos do morango com chantilly (prato favorito de candidata a miss, como se dizia). A mousse de chocolate foi campeã no começo dos anos 70 e, pouco depois, foi a vez do creme de papaya. Por alguma razão, as panquecas (ou crepes), que tentam conquistar um lugar no mercado há quase 30 anos, jamais conseguiram se enraizar. Hoje em dia, ao que parece, o que está em moda é o tal do petit gateau. Se o ritmo das mudanças continuar assim, uma coisa é certa: no futuro será ainda mais difícil se manter magro em São Paulo.


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