São Paulo, quarta-feira, 01 de outubro de 2008

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MARCELO COELHO

Troquem o maestro


Os americanos vão ter de se voltar mais sobre si mesmos e cuidar um pouco da sua própria casa

NO COMEÇO da década de 1960, o compositor e maestro Leonard Bernstein (1918-1990) fez uma série de concertos, transmitidos na TV, explicando a música clássica para crianças e adolescentes.
Os programas agora estão disponíveis em DVD e nos transportam para aquele período de confiança ingênua e jovialidade "moderna" do governo Kennedy. Bem-disposto, com jeito de galã, topete caindo sobre a testa, Leonard Bernstein rompia com a solenidade germânica dos maestros tradicionais. Volta e meia a câmera mostra as crianças, incrivelmente arrumadinhas, que lotam a platéia.
É visível o tédio da maioria delas. Bernstein não desanima; transpira, agita-se, fala e brinca com a orquestra. Usa uma linguagem relativamente simples (e isso ajuda, pois o DVD não tem legendas), sem dúvida adequada a estudantes da década de 60 -duvido que funcionasse nos padrões mais rudimentares de hoje.
Um dos programas mais emocionantes é o dedicado à música erudita norte-americana. Leonard Bernstein toca exemplos dos vários tipos de influência que os compositores de seu país trataram de fundir numa coisa só: os ritmos africanos, os hinos religiosos protestantes, os sons do México... e, sobretudo, a vastidão do território.
A orquestra toca alguns trechos compostos por Aaron Copland (1900-1990), o "pai" da música clássica americana. Ouvem-se algumas notas esparsas, matinais, pairando sobre uma neblina de violinos.
Depois, todo o vigor da "América" irrompe, de modo resoluto e simples. Apesar de moderna, é música de comunicação imediata, entusiasta, vital. Bernstein apresenta em seguida a peça mais conhecida de Copland, a "Fanfarra para o Homem Comum".
Mesmo por aqui essa música acaba sendo bem conhecida; Copland utilizou-a depois para o final de sua Terceira Sinfonia. A "fanfarra" foi encomendada para entusiasmar os soldados que iriam participar da Segunda Guerra Mundial. Foi iniciativa do compositor dedicá-la "ao Homem Comum", num contexto em que líderes e heróis costumam ser os mais enaltecidos.
É que o compositor estava, desde os anos 30, engajado num projeto francamente esquerdista; chegou a dar conferências sobre o papel do compositor clássico no contexto "da luta proletária". Suas composições são confessadamente "populistas", mas o que tinham de profundamente americano contribuiu para que, mesmo durante a Guerra Fria, não fossem esconjuradas do repertório.
O momento mais tocante do DVD é quando, inesperadamente, Leonard Bernstein convida o próprio Aaron Copland para entrar no palco. Ele era um velhinho minúsculo, dentuço, com cara de tartaruga. Sobe ao pódio e ataca, com entusiasmo radioativo, o final da sua sinfonia.
A música parece dizer: "Somos americanos, temos orgulho disso, e nossa mensagem é de otimismo e confiança".
Aquelas imagens do concerto parecem perdidas num passado infantil, "certinho", absolutamente isento de autocrítica.
Sem dúvida, já naquela época os Estados Unidos eram uma potência imperial, paranóica e violenta, concentrando mais do que hoje, talvez, interesses econômicos sem nenhuma relação com ideais de generosidade e democracia.
Em todo caso, parecia ser atuante, na prática política e na arte de um compositor como Copland, a convicção de que continuava a existir, nos Estados Unidos, uma abertura para a inovação e um frescor, que as décadas seguintes iriam abafar.
Com o fim da Guerra Fria, e depois do 11 de Setembro, os Estados Unidos tinham tudo para recuperar um papel positivo, do ponto de vista ideológico, no cenário mundial. Assusta-me o fato de que mesmo Barack Obama, um símbolo e tanto dessas novas possibilidades, tenha de ser tão tímido, tão temeroso da maioria conservadora, em sua campanha. Ser "progressista" é um palavrão; os republicanos ganharam fôlego quando puseram de vice a figurinha troglodita de Sarah Palin.
A crise econômica veio ajudar Obama; dificilmente ajudará o governo do próximo presidente. Seja quem for o vitorioso nas eleições, pelo menos os americanos vão ter de se voltar um pouco mais sobre si mesmos e cuidar um pouco da própria casa. Quem sabe assim eles se reencontrem; são capazes de tocar música melhor do que a apresentada ultimamente.

coelhofsp@uol.com.br



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