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LIVRO
"Memórias de uma Mulher Impossível" refaz trajetória política e familiar da militante feminista
Rose Marie Muraro solta seus demônios
CYNARA MENEZES
da Reportagem Local
A escritora Rose Marie Muraro,
68, foi primeiro cristã, militante
da Igreja Católica progressista, e
só depois feminista, embora tenha a luta pela igualdade da mulher como algo intuitivo em sua
vida.
Agora, solta seus demônios no
livro "Memórias de uma Mulher
Impossível", em que fala muito
pouco de sua vida pessoal e bastante de seus feitos.
O livro acaba dando um panorama da esquerda no Brasil pré e
pós-64, com Rose Marie como
observadora atenta e próxima dos
acontecimentos e de seus personagens, alguns dos quais não
poupa de críticas.
Leia a seguir trechos da entrevista que a escritora deu esta semana à Folha, por telefone.
Folha - A sra. se considera a
primeira feminista do Brasil?
Rose Marie Muraro - Não. A
Berta Lutz, por exemplo, que conseguiu o voto para as mulheres,
foi uma grande pioneira do feminismo. Mas fui a primeira no Brasil moderno a fazer um trabalho
realmente feminista. Isso foi em
71, não é? Não conheço nenhum
anterior.
Folha - O feminismo foi uma
coisa intuitiva em sua formação?
Rose Marie - Para mim, era. Eu
não sabia de nada. Só sabia que
Simone de Beauvoir tinha escrito
um livro ("O Segundo Sexo") e
ponto. O que eu fiz, fiz sozinha.
Folha - Como resultado do feminismo, não há hoje uma mulher exageradamente forte e um
homem dominado?
Rose Marie - Tem que passar
por essa fase, senão não chega à
igualdade. O homem também
tem que se rever. É natural, com a
mulher se liberando, que o homem tenha ficado perdido, entregado os pontos. Mas mulher autoritária é o mesmo que mulher
submissa. O objetivo (do feminismo) é integrar homem e mulher,
e só se pode integrar dois sujeitos.
Folha - Por que a sra. só entra
muito sutilmente em aspectos
de sua vida pessoal no livro?
Rose Marie - Porque não vale a
pena. Nem cito nomes.
Folha - Por quê?
Rose Marie - Porque aí você entra no reino da fofoca.
Folha - O livro todo perpassa
uma formação cristã em sua
personalidade...
Rose Marie - Sem dúvida. Eu
sou hoje pós-cristã e pós-religiosa, mas nunca serei materialista.
Folha - Ao mesmo tempo, a
sra. solta os seus demônios.
Rose Marie - O tempo todo.
Folha - Inclusive contra algumas pessoas.
Rose Marie - Sim, aquelas de
quem eu podia falar, não todas.
Folha - Em um momento, a
sra. fala que o Carlos Heitor
Cony "endireitou" na época do
regime militar. Como foi isso?
Rose Marie - Ele ficou mais a favor do sistema, era muito mais
contestatário e depois ficou quieto. Era mais contestador no começo, depois passou.
Folha - A sra. também fala que
o José Ermírio de Moraes (pai de
Antonio Ermírio) foi o culpado
da falência de sua família.
Rose Marie - Não digo que a
culpa, mas pelo que eu saiba
-não posso garantir porque isso
foi há mais de 60 anos-, ele comprou a fábrica do meu pai a preço
de banana. Pelo que meu tio falou, ele forçou (a compra). Todos
eles forçam, né? Isso é um mecanismo do próprio sistema.
Folha - A sra. compra uma briga com sua própria família no livro, não é?
Rose Marie - É. Eu tinha muita
raiva de minha família porque só
os mais espertos ficavam com o
dinheiro. Depois eu vim a ver que
todas as famílias de classe dominante eram iguais à minha. Aí eu
fiquei mais de bem com ela.
Folha - A publicação do livro
não vai lhe criar problemas familiares de novo?
Rose Marie - Acho que vou
criar problemas com a Igreja,
com a família, com os militares.
Não vai ter nenhuma área em que
eu saia isenta. Estou apavorada.
Folha - A sra. me falou que está chamando até Deus de canalha. É verdade?
Rose Marie - Ai, não fala isso,
não. Mas chamo mesmo. Cheguei
a sonhar que dizia isso: "Deus, você pune os atos de amor. A pessoa
que ama, no sistema, dança na
hora. E você recompensa a manipulação". Depois fiquei realista:
não espero nenhuma recompensa pela minha vida.
Folha - A sra. toca, com certa
ironia, no ponto do celibato na
Igreja. Isso existe mesmo?
Rose Marie - Naquela época do
d. Hélder (Câmara), o que eu via
era ele ter amizades com mulheres totalmente sublimadas. Mas
via relações muito profundas, ele
não era misógino. Aquelas pessoas mantinham a castidade, mas
mantinham uma relação profunda com o feminino. E era satisfatório, de uma certa maneira. Depois, quando se descobriu que essa castidade servia ao sistema, ela
foi criticada até as últimas consequências. Aí começou a sair freira, sair padre, os padres começaram a se relacionar com mulheres. Ficaram mais os homossexuais. Eu acho que os padres têm
que se casar, se relacionar com
mulheres para fazer a Igreja mais
humana.
Folha - Os que estão já não se
relacionam?
Rose Marie - Não vou alcaguetar os padres, mas acho muito
possível.
Folha - No livro, a sra. cita famosos de hoje que foram seus
alunos, como Paulo Coelho. O
que acha dele?
Rose Marie - Eu acho que tem
que se respeitar essa empatia que
ele tem com o inconsciente coletivo. Outro que tem é o Leonardo
Boff, mas de outra maneira. O
Paulo Coelho aliena, enquanto o
Leonardo liberta. Ele aliena porque leva para uma espiritualidade
individual, convencional, fácil,
que não transforma nada. O Leonardo tem uma formação muito
mais sólida, profunda, e agora está conseguindo falar com o inconsciente coletivo do ponto de
vista de um grande intelectual que
é também um grande poeta.
Folha - Qual foi a importância
histórica da esquerda da Igreja,
à qual a sra. esteve ligada?
Rose Marie - Se não tivesse existido a esquerda da Igreja, estaríamos perdidos no neoliberalismo e
na globalização. Aí seria dominação para sempre. A mensagem
central do meu livro é que quando
rejeitei a riqueza, peguei esse modelo. Foi a melhor coisa que fiz na
minha vida.
Folha - Darcy Ribeiro era mau
caráter, como a sra. diz?
Rose Marie - Eu acho, ele era
um Macunaíma, um herói sem
caráter. Fazia o que lhe dava na telha. Depois do que ele me disse
(na campanha dela a deputada federal, em 86, Darcy a teria "abandonado"), fiquei danada. Nunca
mais quis falar com ele.
Folha - Político não tem caráter, de maneira geral?
Rose Marie - Não. O jogo da política é um salve-se quem puder. A
briga pelo poder é imoral. O político é obrigado a se vender o tempo todo, senão dança. Eu não tolerei aquilo, não. Não gosto de
partido.
Folha - Das drogas que a sra.
experimentou, dá a impressão
de só ter gostado do Daime. É
isso mesmo?
Rose Marie - Foi. Era a única
droga iniciática, o resto era tudo
um saco. Só pude tomar uma vez,
porque quase morri, mas valeu a
pena. Maconha me dava sono.
Folha - A sra. fala que trocou a
felicidade pela vida, mas o que
aparece é uma pessoa que faz
tudo com muita alegria.
Rose Marie - Eu sou muito porra-louca. Sou carioca, minha filha! Você não encontra carioca
triste.
Livro: Memórias de uma Mulher
Impossível
Autora: Rose Marie Muraro
Editora: Record (no prelo)
Quanto: a definir (405 págs.)
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