São Paulo, Segunda-feira, 01 de Novembro de 1999
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LIVRO
"Memórias de uma Mulher Impossível" refaz trajetória política e familiar da militante feminista
Rose Marie Muraro solta seus demônios

CYNARA MENEZES
da Reportagem Local

A escritora Rose Marie Muraro, 68, foi primeiro cristã, militante da Igreja Católica progressista, e só depois feminista, embora tenha a luta pela igualdade da mulher como algo intuitivo em sua vida.
Agora, solta seus demônios no livro "Memórias de uma Mulher Impossível", em que fala muito pouco de sua vida pessoal e bastante de seus feitos.
O livro acaba dando um panorama da esquerda no Brasil pré e pós-64, com Rose Marie como observadora atenta e próxima dos acontecimentos e de seus personagens, alguns dos quais não poupa de críticas.
Leia a seguir trechos da entrevista que a escritora deu esta semana à Folha, por telefone.

Folha - A sra. se considera a primeira feminista do Brasil?
Rose Marie Muraro
- Não. A Berta Lutz, por exemplo, que conseguiu o voto para as mulheres, foi uma grande pioneira do feminismo. Mas fui a primeira no Brasil moderno a fazer um trabalho realmente feminista. Isso foi em 71, não é? Não conheço nenhum anterior.

Folha - O feminismo foi uma coisa intuitiva em sua formação?
Rose Marie
- Para mim, era. Eu não sabia de nada. Só sabia que Simone de Beauvoir tinha escrito um livro ("O Segundo Sexo") e ponto. O que eu fiz, fiz sozinha.

Folha - Como resultado do feminismo, não há hoje uma mulher exageradamente forte e um homem dominado?
Rose Marie
- Tem que passar por essa fase, senão não chega à igualdade. O homem também tem que se rever. É natural, com a mulher se liberando, que o homem tenha ficado perdido, entregado os pontos. Mas mulher autoritária é o mesmo que mulher submissa. O objetivo (do feminismo) é integrar homem e mulher, e só se pode integrar dois sujeitos.

Folha - Por que a sra. só entra muito sutilmente em aspectos de sua vida pessoal no livro?
Rose Marie
- Porque não vale a pena. Nem cito nomes.

Folha - Por quê?
Rose Marie
- Porque aí você entra no reino da fofoca.

Folha - O livro todo perpassa uma formação cristã em sua personalidade...
Rose Marie
- Sem dúvida. Eu sou hoje pós-cristã e pós-religiosa, mas nunca serei materialista.

Folha - Ao mesmo tempo, a sra. solta os seus demônios.
Rose Marie
- O tempo todo.

Folha - Inclusive contra algumas pessoas.
Rose Marie
- Sim, aquelas de quem eu podia falar, não todas.

Folha - Em um momento, a sra. fala que o Carlos Heitor Cony "endireitou" na época do regime militar. Como foi isso?
Rose Marie
- Ele ficou mais a favor do sistema, era muito mais contestatário e depois ficou quieto. Era mais contestador no começo, depois passou.

Folha - A sra. também fala que o José Ermírio de Moraes (pai de Antonio Ermírio) foi o culpado da falência de sua família.
Rose Marie
- Não digo que a culpa, mas pelo que eu saiba -não posso garantir porque isso foi há mais de 60 anos-, ele comprou a fábrica do meu pai a preço de banana. Pelo que meu tio falou, ele forçou (a compra). Todos eles forçam, né? Isso é um mecanismo do próprio sistema.

Folha - A sra. compra uma briga com sua própria família no livro, não é?
Rose Marie
- É. Eu tinha muita raiva de minha família porque só os mais espertos ficavam com o dinheiro. Depois eu vim a ver que todas as famílias de classe dominante eram iguais à minha. Aí eu fiquei mais de bem com ela.

Folha - A publicação do livro não vai lhe criar problemas familiares de novo?
Rose Marie
- Acho que vou criar problemas com a Igreja, com a família, com os militares. Não vai ter nenhuma área em que eu saia isenta. Estou apavorada.

Folha - A sra. me falou que está chamando até Deus de canalha. É verdade?
Rose Marie
- Ai, não fala isso, não. Mas chamo mesmo. Cheguei a sonhar que dizia isso: "Deus, você pune os atos de amor. A pessoa que ama, no sistema, dança na hora. E você recompensa a manipulação". Depois fiquei realista: não espero nenhuma recompensa pela minha vida.

Folha - A sra. toca, com certa ironia, no ponto do celibato na Igreja. Isso existe mesmo?
Rose Marie
- Naquela época do d. Hélder (Câmara), o que eu via era ele ter amizades com mulheres totalmente sublimadas. Mas via relações muito profundas, ele não era misógino. Aquelas pessoas mantinham a castidade, mas mantinham uma relação profunda com o feminino. E era satisfatório, de uma certa maneira. Depois, quando se descobriu que essa castidade servia ao sistema, ela foi criticada até as últimas consequências. Aí começou a sair freira, sair padre, os padres começaram a se relacionar com mulheres. Ficaram mais os homossexuais. Eu acho que os padres têm que se casar, se relacionar com mulheres para fazer a Igreja mais humana.

Folha - Os que estão já não se relacionam?
Rose Marie
- Não vou alcaguetar os padres, mas acho muito possível.

Folha - No livro, a sra. cita famosos de hoje que foram seus alunos, como Paulo Coelho. O que acha dele?
Rose Marie
- Eu acho que tem que se respeitar essa empatia que ele tem com o inconsciente coletivo. Outro que tem é o Leonardo Boff, mas de outra maneira. O Paulo Coelho aliena, enquanto o Leonardo liberta. Ele aliena porque leva para uma espiritualidade individual, convencional, fácil, que não transforma nada. O Leonardo tem uma formação muito mais sólida, profunda, e agora está conseguindo falar com o inconsciente coletivo do ponto de vista de um grande intelectual que é também um grande poeta.

Folha - Qual foi a importância histórica da esquerda da Igreja, à qual a sra. esteve ligada?
Rose Marie
- Se não tivesse existido a esquerda da Igreja, estaríamos perdidos no neoliberalismo e na globalização. Aí seria dominação para sempre. A mensagem central do meu livro é que quando rejeitei a riqueza, peguei esse modelo. Foi a melhor coisa que fiz na minha vida.

Folha - Darcy Ribeiro era mau caráter, como a sra. diz?
Rose Marie
- Eu acho, ele era um Macunaíma, um herói sem caráter. Fazia o que lhe dava na telha. Depois do que ele me disse (na campanha dela a deputada federal, em 86, Darcy a teria "abandonado"), fiquei danada. Nunca mais quis falar com ele.

Folha - Político não tem caráter, de maneira geral?
Rose Marie
- Não. O jogo da política é um salve-se quem puder. A briga pelo poder é imoral. O político é obrigado a se vender o tempo todo, senão dança. Eu não tolerei aquilo, não. Não gosto de partido.

Folha - Das drogas que a sra. experimentou, dá a impressão de só ter gostado do Daime. É isso mesmo?
Rose Marie
- Foi. Era a única droga iniciática, o resto era tudo um saco. Só pude tomar uma vez, porque quase morri, mas valeu a pena. Maconha me dava sono.

Folha - A sra. fala que trocou a felicidade pela vida, mas o que aparece é uma pessoa que faz tudo com muita alegria.
Rose Marie
- Eu sou muito porra-louca. Sou carioca, minha filha! Você não encontra carioca triste.


Livro: Memórias de uma Mulher Impossível Autora: Rose Marie Muraro Editora: Record (no prelo) Quanto: a definir (405 págs.)

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