|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A culpa é do sistema
Ney Latorraca estréia amanhã como vilão de "O Sistema'; à Folha, o ator fala da série e de
sua mudança de "exibido" para "alguém que valoriza o cotidiano'
Luciana Whitaker/Folha Imagem
| Ney Latorraca, em seu apartamento na Lagoa, no Rio, diante de um quadro da artista plástica Analu Prestes, que ganhou da atriz Louise Cardoso |
LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Aos 63 anos, o ator Ney Latorraca sabe que a culpa nem
sempre é do sistema. "Tive
duas úlceras e uma diverticulite por ser muito exibido. Queria aparecer de qualquer jeito."
A partir de amanhã à noite,
ele será Katedref, todo-poderoso de uma grande companhia, o
vilão da série "O Sistema", da
Globo. "Ele vai usar fralda. Os
poderosos são pessoas infantis." À Folha, o intérprete de
grandes personagens humorísticos falou sobre a infância pobre, o desejo de reunir os corpos do pai e da mãe e da transformação de "deslumbrado"
para alguém que valoriza "rituais sagrados do cotidiano".
FOLHA - Como se sente como o
grande vilão do sistema?
NEY LATORRACA - Katedref tem
uma coisa infantil. Os poderosos são infantis, mimados. Havia a proposta da Fernanda
[Young] e do Alexandre [Machado, autores de "O Sistema"]
para eu fazer nu, e colocariam
uma tarja. Mas disse que achava que ele deveria usar fralda,
porque mostra bem o que ele é.
A secretária passa talquinho
porque está assado. É uma
criança rebelde, reclama de tudo, porque mexem no brinquedo dele, que é o sistema.
FOLHA - O sr. é vítima do sistema?
LATORRACA - Estou enlouquecendo porque sou assinante da
Net, e minha banda larga não
entra há mais de dez dias, e no
final do mês vem o boleto. Telefono e falam: "Um momentinho, aperte a tecla 2". Digo tudo
e mandam apertar outra tecla.
Ontem, quando fui me deitar,
fiquei tenso porque liguei para
o serviço despertador. "Aperte
a tecla 1." E quando me ligam
nuns horários estranhos e me
chamam de Antônio [seu nome
é Antônio Ney Latorraca]... Sei
que é cilada, é telemarketing.
FOLHA - Como é criticar o sistema
em um programa da TV Globo?
LATORRACA - Não é isso, mas
uma proposta de humor. O
exercício é tentar trazer um recado, uma gargalhada ou uma
lágrima, sem pretensão. Não
existe essa coisa de "viemos para mudar o sistema". E o humor
é nobre. Fiz muita coisa até
chegar ao Katedref.
FOLHA - Seus pais trabalharam em
cassinos. Como foi ter uma infância
pobre, ser excluído do sistema?
LATORRACA - Estou falando
muito nisso ultimamente.
Meus pais morreram, estou
com 63 anos, e há momentos
em que eles vão se aproximando de mim, da minha maneira
de ser. Éramos pobres, morávamos numa pensão. Não tinha
muita coisa, nunca soube o que
era brinquedo, história em quadrinhos. Mas fazia sucesso no
colégio. Mostrava aos colegas
como montar uma caixa de madeira, e aí já estava representando. Estava achando um barato ser diferente dos outros.
FOLHA - A exclusão é, de certa forma, enriquecedora?
LATORRACA - Claro. Tudo para
mim é lucro. Os diversos personagens, a roupa do personagem. Meus pais passaram pelo
cassino, depois foram trabalhar
com Grande Otelo, meu padrinho de batismo. Com aquela vida, tinham medo que não fosse
dar certo para mim. Mas dizia
que ia vencer e colocar o sobrenome deles nos letreiros. E
consegui. Meu pai morreu em
1988, minha mãe, em 94. Tinha
muita ligação com ela, mas agora me arrependo de ter falado
muita coisa para meu pai...
FOLHA - Do que se arrepende?
LATORRACA - Ah, de ter dito algumas bobagens. Estou em um
resgate. Antes, só tinha foto da
minha mãe no porta-retratos.
Agora coloquei uma dele junto.
Ele está enterrado em Santos
[litoral de SP, onde Ney nasceu], e ela, no Morumbi [SP].
Estou com vontade de juntar os
dois. Quando morreram, já estavam separados, mas quero
uni-los. Não é nada mórbido,
mas um ritual que quero fazer.
Fui ficando mais maduro. Estou acreditando piamente no
meu cotidiano. Não acredito
mais nos grandes eventos. O
cotidiano é o sagrado para mim,
meus rituais, pegar o meu livro,
andar, tomar banho com minha
toalha branca, morar bem, falar
no telefone com as pessoas, tratar bem a imprensa porque aí
ela me trata bem. Gosto de ser
reconhecido, sou vaidoso.
FOLHA - A sua relação com a imprensa não era boa?
LATORRACA - Eu era muito
"oba-oba", deslumbrado. Sabe
a pessoa de SP que chega ao Rio
e sai em escola de samba? E aí
fica impossível, não sai só em
uma escola, sai em 12, ninguém
agüenta. E aí precisa ter úlcera
para ficar "menos".
FOLHA - É uma metáfora ou teve
mesmo uma úlcera?
LATORRACA - Tive duas úlceras e
uma diverticulite por ser muito
exibido. Queria aparecer de
qualquer jeito. Não precisa disso, gente. Está lá o trabalho já.
Ando pela Lagoa, e vão me
cumprimentando. Dependendo do personagem pelo qual
me chamam, sei a idade do fã.
Pode ser Mederix ["Estúpido
Cupido", 76], Barbosa ["TV Pirata", 88]. Outro dia me chamaram de Eduardo ["Da Cor do
Pecado", 2004]. Meu Deus!
FOLHA - Em seu blog, você conta
que, enquanto anda pela Lagoa, liga
do celular e deixa recado sobre seus
compromissos na sua secretária eletrônica. Não dá para se desligar nem
um pouco do sistema?
LATORRACA - É difícil, mas tenho
um momento contemplativo.
Vejo passarinhos namorando,
flor, essas vacas [Cow Parade].
FOLHA - Está gostando de ter blog?
LATORRACA - Estou começando.
Escrevo em um bloco de papel,
a lápis, daqueles com borracha
na ponta, e passo para o computador. Não pode ser uma coisa pretensiosa. É péssimo virar
busto, como aqueles de gesso
que ficam em cima do piano.
Não posso acreditar em mim e
falar: "Tô arrasando, né?!" Não.
Estou fazendo o meu trabalho.
FOLHA - Capitão Nascimento, de
"Tropa de Elite", diz que "o sistema
não existe para resolver problemas
das pessoas, mas para resolver os
problemas do sistema". Vê paralelo
entre a crítica do filme e a da série?
LATORRACA - São dramaturgias
diferentes. Mas a série também
é crítica. O humor é uma arma
forte, podemos dizer coisas terríveis e dar grandes recados.
FOLHA - "O Sistema" parece ser
inovador. Mas certamente não será
mais do que "TV Pirata", não acha?
LATORRACA - Não sei nem se
tem essa preocupação. Quando
era o Barbosa, nunca imaginei
que seria aquele sucesso. Ninguém esperava que aquilo fosse
funcionar como uma mudança.
FOLHA - "Pânico" é revolucionário?
LATORRACA - Não sei, mas gosto.
Também gosto de algumas coisas do "Zorra Total", Tom Cavalcante fazendo Ana Maria
Braga, da crítica que o Miguel
[Falabella] faz de condomínios
da Barra ["Toma Lá Dá Cá"], do
"Casseta & Planeta", especialmente nas sátiras às novelas.
FOLHA - Prefere "Casseta", da Globo, ou "Pânico", da Rede TV!?
LATORRACA - Tudo bem, fui simpático até agora... Mas não, não
vou responder [risos].
Texto Anterior: Horário nobre na TV aberta Próximo Texto: Frase Índice
|