São Paulo, quinta-feira, 01 de novembro de 2007

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A culpa é do sistema

Ney Latorraca estréia amanhã como vilão de "O Sistema'; à Folha, o ator fala da série e de sua mudança de "exibido" para "alguém que valoriza o cotidiano'

Luciana Whitaker/Folha Imagem
Ney Latorraca, em seu apartamento na Lagoa, no Rio, diante de um quadro da artista plástica Analu Prestes, que ganhou da atriz Louise Cardoso


LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Aos 63 anos, o ator Ney Latorraca sabe que a culpa nem sempre é do sistema. "Tive duas úlceras e uma diverticulite por ser muito exibido. Queria aparecer de qualquer jeito." A partir de amanhã à noite, ele será Katedref, todo-poderoso de uma grande companhia, o vilão da série "O Sistema", da Globo. "Ele vai usar fralda. Os poderosos são pessoas infantis." À Folha, o intérprete de grandes personagens humorísticos falou sobre a infância pobre, o desejo de reunir os corpos do pai e da mãe e da transformação de "deslumbrado" para alguém que valoriza "rituais sagrados do cotidiano".

 

FOLHA - Como se sente como o grande vilão do sistema?
NEY LATORRACA
- Katedref tem uma coisa infantil. Os poderosos são infantis, mimados. Havia a proposta da Fernanda [Young] e do Alexandre [Machado, autores de "O Sistema"] para eu fazer nu, e colocariam uma tarja. Mas disse que achava que ele deveria usar fralda, porque mostra bem o que ele é.
A secretária passa talquinho porque está assado. É uma criança rebelde, reclama de tudo, porque mexem no brinquedo dele, que é o sistema.

FOLHA - O sr. é vítima do sistema?
LATORRACA
- Estou enlouquecendo porque sou assinante da Net, e minha banda larga não entra há mais de dez dias, e no final do mês vem o boleto. Telefono e falam: "Um momentinho, aperte a tecla 2". Digo tudo e mandam apertar outra tecla.
Ontem, quando fui me deitar, fiquei tenso porque liguei para o serviço despertador. "Aperte a tecla 1." E quando me ligam nuns horários estranhos e me chamam de Antônio [seu nome é Antônio Ney Latorraca]... Sei que é cilada, é telemarketing.

FOLHA - Como é criticar o sistema em um programa da TV Globo?
LATORRACA
- Não é isso, mas uma proposta de humor. O exercício é tentar trazer um recado, uma gargalhada ou uma lágrima, sem pretensão. Não existe essa coisa de "viemos para mudar o sistema". E o humor é nobre. Fiz muita coisa até chegar ao Katedref.

FOLHA - Seus pais trabalharam em cassinos. Como foi ter uma infância pobre, ser excluído do sistema?
LATORRACA
- Estou falando muito nisso ultimamente. Meus pais morreram, estou com 63 anos, e há momentos em que eles vão se aproximando de mim, da minha maneira de ser. Éramos pobres, morávamos numa pensão. Não tinha muita coisa, nunca soube o que era brinquedo, história em quadrinhos. Mas fazia sucesso no colégio. Mostrava aos colegas como montar uma caixa de madeira, e aí já estava representando. Estava achando um barato ser diferente dos outros.

FOLHA - A exclusão é, de certa forma, enriquecedora?
LATORRACA
- Claro. Tudo para mim é lucro. Os diversos personagens, a roupa do personagem. Meus pais passaram pelo cassino, depois foram trabalhar com Grande Otelo, meu padrinho de batismo. Com aquela vida, tinham medo que não fosse dar certo para mim. Mas dizia que ia vencer e colocar o sobrenome deles nos letreiros. E consegui. Meu pai morreu em 1988, minha mãe, em 94. Tinha muita ligação com ela, mas agora me arrependo de ter falado muita coisa para meu pai...

FOLHA - Do que se arrepende?
LATORRACA
- Ah, de ter dito algumas bobagens. Estou em um resgate. Antes, só tinha foto da minha mãe no porta-retratos. Agora coloquei uma dele junto. Ele está enterrado em Santos [litoral de SP, onde Ney nasceu], e ela, no Morumbi [SP]. Estou com vontade de juntar os dois. Quando morreram, já estavam separados, mas quero uni-los. Não é nada mórbido, mas um ritual que quero fazer.
Fui ficando mais maduro. Estou acreditando piamente no meu cotidiano. Não acredito mais nos grandes eventos. O cotidiano é o sagrado para mim, meus rituais, pegar o meu livro, andar, tomar banho com minha toalha branca, morar bem, falar no telefone com as pessoas, tratar bem a imprensa porque aí ela me trata bem. Gosto de ser reconhecido, sou vaidoso.

FOLHA - A sua relação com a imprensa não era boa?
LATORRACA
- Eu era muito "oba-oba", deslumbrado. Sabe a pessoa de SP que chega ao Rio e sai em escola de samba? E aí fica impossível, não sai só em uma escola, sai em 12, ninguém agüenta. E aí precisa ter úlcera para ficar "menos".

FOLHA - É uma metáfora ou teve mesmo uma úlcera?
LATORRACA
- Tive duas úlceras e uma diverticulite por ser muito exibido. Queria aparecer de qualquer jeito. Não precisa disso, gente. Está lá o trabalho já. Ando pela Lagoa, e vão me cumprimentando. Dependendo do personagem pelo qual me chamam, sei a idade do fã. Pode ser Mederix ["Estúpido Cupido", 76], Barbosa ["TV Pirata", 88]. Outro dia me chamaram de Eduardo ["Da Cor do Pecado", 2004]. Meu Deus!

FOLHA - Em seu blog, você conta que, enquanto anda pela Lagoa, liga do celular e deixa recado sobre seus compromissos na sua secretária eletrônica. Não dá para se desligar nem um pouco do sistema?
LATORRACA
- É difícil, mas tenho um momento contemplativo. Vejo passarinhos namorando, flor, essas vacas [Cow Parade].

FOLHA - Está gostando de ter blog?
LATORRACA
- Estou começando. Escrevo em um bloco de papel, a lápis, daqueles com borracha na ponta, e passo para o computador. Não pode ser uma coisa pretensiosa. É péssimo virar busto, como aqueles de gesso que ficam em cima do piano. Não posso acreditar em mim e falar: "Tô arrasando, né?!" Não. Estou fazendo o meu trabalho.

FOLHA - Capitão Nascimento, de "Tropa de Elite", diz que "o sistema não existe para resolver problemas das pessoas, mas para resolver os problemas do sistema". Vê paralelo entre a crítica do filme e a da série?
LATORRACA
- São dramaturgias diferentes. Mas a série também é crítica. O humor é uma arma forte, podemos dizer coisas terríveis e dar grandes recados.

FOLHA - "O Sistema" parece ser inovador. Mas certamente não será mais do que "TV Pirata", não acha?
LATORRACA
- Não sei nem se tem essa preocupação. Quando era o Barbosa, nunca imaginei que seria aquele sucesso. Ninguém esperava que aquilo fosse funcionar como uma mudança.

FOLHA - "Pânico" é revolucionário?
LATORRACA
- Não sei, mas gosto. Também gosto de algumas coisas do "Zorra Total", Tom Cavalcante fazendo Ana Maria Braga, da crítica que o Miguel [Falabella] faz de condomínios da Barra ["Toma Lá Dá Cá"], do "Casseta & Planeta", especialmente nas sátiras às novelas.

FOLHA - Prefere "Casseta", da Globo, ou "Pânico", da Rede TV!?
LATORRACA
- Tudo bem, fui simpático até agora... Mas não, não vou responder [risos].


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