São Paulo, segunda-feira, 01 de dezembro de 2008

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LUIZ FELIPE PONDÉ

A ladeira


Nós estávamos unidos no mundo; prazer e dor, ela e eu; Chamam isso de desejo


LEMBRO-ME DE seu rosto, de seu choro, de seus gritos. Era uma dessas mulatas que povoam o mundo de qualquer menino nordestino. Eu, menino da elite branca, sentado no banco de trás do carro de meu pai, com meus oito anos, assistia sua agonia.
Ela, de joelhos na ladeira, gritava de dor enquanto segurava, entre as pernas, a cabeça de uma criança que forçava entre sangue e urina, sua entrada no mundo.
Assim vi, pela primeira vez, o nascimento de uma criança. Sua agonia me chamou a atenção. São as mulheres condenadas a essa dor? Mais tarde entendi que era isso que me assustava na cena. O próprio sentido do mundo se dividir entre homens e mulheres era ainda uma idéia vaga.
De alguma forma essa cena me iniciou no que mais tarde ouvi chamar de condição feminina: correr o risco de gritar sozinha numa ladeira. Logo entendi que este era um mundo do qual eu estava protegido: jamais cairia numa ladeira por aquela razão.
Minha simpatia era inteira para aquela infeliz, a criança era mero detalhe. Mulheres carregavam bebês na barriga! Até então, não sabia ao certo a forma como os bebês vinham ao mundo. De certa forma, aquela cena marcou minha entrada do mundo de homens e mulheres.
Durante dias tive aquela imagem na memória. Havia uma beleza brutal naquela mulher corajosa e sozinha na ladeira. Todas as mulheres à minha volta eram ela.
Muito do que penso hoje é fruto de fatos assim. Daí minha tendência incontrolável em confiar mais nas sensações primitivas do que em idéias. Aquela sensação sempre me acompanha quando o tema é "condição feminina".
Dois outros fatos se somariam a este para compor, finalmente, minha entrada no mundo de homens e mulheres. Certa feita, uma confusão tomou conta dos fundos da minha casa. Na minha memória, foi logo após aquela mulher da ladeira. Talvez essa proximidade temporal seja apenas truques do inconsciente. Uma empregada estava de repente "doente". Desmaiara no banheiro dos fundos da casa. Uma correria invadiu o mundo das mulheres à minha volta.
Algumas horas depois, fui sorrateiramente ao quarto da empregada e a vi deitada encolhida na cama, chorando. Algo no banheiro dela o tornava território proibido. Não sei se vi ou se pensei que vi, mas lembro-me daquela coisa ensangüentada no chão. Ela perdera a criança. A mulher na ladeira e a minha empregada, de repente, eram uma só.
Definitivamente o mundo agora estava dividido em dois tipos de gente: os que carregam bebês na barriga e de repente gritam de dor, e os que assistem a esse sofrimento. Deus tinha decidido que eu não era do tipo que passaria por aquele sofrimento. Mas algo me dizia que eu devia ter algo a ver com aquilo.
Um dia, conheci uma colega nova de classe. Logo a achei maravilhosamente linda. Sua simples presença enchia a escola de encanto. Ela era uma daquelas que carregariam bebês na barriga. Temia por ela também. Com o passar do tempo, impulsos de pegar nela me enchiam a cabeça. Depois compreendi que esta era a etapa do processo através do qual eu entenderia meu papel naquela cena da ladeira. Este papel começava com aquela vontade esquisita de pegar naquela menina linda que sentava ao meu lado na classe.
Mas a grande felicidade ainda estava por vir. Aquela coisa linda falava comigo! Na escola, passávamos horas conversando. Escutava com um interesse indescritível as aventuras com suas bonecas. A vontade de pegar nela era cada vez maior. O fato de me contar aquelas histórias significava pra mim que um dia ela deixaria eu pegar nela.
Não sei mais como fiz a importante descoberta final. Não foi graças a essa bobagem chamada educação sexual. Devo ter juntado cenas de TV, conversas ouvidas sorrateiramente entre as amigas de minhas irmãs mais velhas, revistas, enfim, o mundo começava a me educar, assim como tem feito há milhares de anos com todo mundo.
Entendi que as mulheres passavam por aquela dor porque homens tinham vontade de pegar nelas. E elas gostavam disso, por isso ficavam contando histórias para eles. Ali estava o elo: homens e mulheres tinham vontade de pegar uns nos outros e isso era a causa dos gritos, sangue e crianças. O que eu sentira por aquela mulher na ladeira me levou a olhar para minha linda colega com cuidado. Estávamos unidos no mundo. Prazer e dor, ela e eu. Chamam isso de desejo. Logo seria meu aniversário. Ela me deu um livro de presente! Era final de abril, quase maio. O ano, 1968.

luiz.ponde@grupofolha.com.br


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