São Paulo, domingo, 02 de janeiro de 2005

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FERREIRA GULLAR

Resmungos

Ao ser convidado a escrever crônicas para este jornal, minha primeira reação foi de euforia: vou escrever para um grande jornal! Mas, passado o primeiro momento, veio-me do fundo da consciência esta pergunta: mas escrever o quê? E quase telefono para o jornal desistindo.
Sim, eu não moro em São Paulo, logo não poderei me aproveitar dos temas locais, restando-me falar dos temas nacionais. E quem sou eu para tratar de tais temas, que são preponderantemente técnicos, como os econômicos, os jurídicos, os esportivos...?
Sobrariam os temas políticos, que não exigem tanta especialização, mas requerem estar "por dentro", enquanto eu estou sempre por fora, já que não me dou com deputados, senadores, ministros; com prefeitos e governadores, nem se fala!
E presidentes da República? O único que me convidou para almoçar -e no Palácio da Alvorada- foi José Sarney, mesmo assim porque fomos companheiros de juventude em São Luís. Mas não os culpo, pois sei muito bem não haver razão nenhuma para um presidente da República conversar com poetas que, por definição, vivem nas nuvens. Por que você acha que Platão os expulsou de sua República ideal? Costumo dizer que, se dependesse dos poetas, o mundo estaria na idade da pedra, já que nem a faca de sílex teria sido inventada, muito menos a roda, o arado, o avião, o computador... Nem tampouco -diga-se a nosso favor- a bomba atômica e o fuzil AR-15.
Assim foi que, quanto mais refletia, mais vontade tinha de desistir. E me dizia: bom de fato é escrever para jornais de menor peso e circulação, que pouca gente lê e, conseqüentemente, escreva você o que escrever, fica por isso mesmo. É quase como se falasse sozinho no seu quarto, ou numa mesa de bar: aí você diz o diabo, esculhamba com os poderosos e famosos sem correr o risco de ter seus argumentos reduzidos a pó publicamente por um especialista nem de ser processado por calúnia ou coisa semelhante.
A verdade é que quanto mais pensava mais achava que tinha entrado numa fria. Esse pessoal da Folha é maluco, por que me fazer um convite desses se eu não entendo de nada? É verdade que eu vivo pensando, que chego ao ponto de ligar o aquecedor para tomar banho e me esquecer do banho ou, mergulhado nas minhas reflexões, deixar de me vestir e sair nu do banheiro. Por tanto pensar, certa vez mijei na lata de lixo achando que era o vaso sanitário e, na praia, imerso em cismas, tirei o calção para entrar na água acreditando que estava em meu banheiro.
Penso sobre qualquer assunto, desde uma videoinstalação sacal que vi no MAM do Rio até a matéria escura que o Stephen Hawking diz preencher a maior parte do espaço cósmico. É bem possível, ao entrar em meu escritório, encontrar-me fazendo um discurso contra a teoria do Big Bang: "Não dá pra acreditar que os bilhões de galáxias que existem hoje estivessem, no começo do universo, comprimidos numa esfera do tamanho de uma bola de tênis!". Por isso mesmo, já na juventude, mal chegado ao Rio, fui logo apelidado sarcasticamente de "profissional do pensamento". Donde concluir-se que, como penso sobre tudo sem de nada entender, posso adotar a definição que deu de si mesmo Otto Lara Resende: "Sou um especialista em idéias gerais".
Dizer que não entendo de nada é exagero. Aliás, não é aconselhável exagerar na modéstia nem ficar se depreciando em público porque corre-se o risco de que, neste ponto, todos concordem com você. "Se ele mesmo o diz..." De alguma coisa entendo, creio eu, de arte, por exemplo, e há pessoas que o admitem. De fato, dediquei -e ainda dedico- a maior parte de meu tempo intelectual a pensar sobre esse assunto. Já escrevi até livros sobre ele.
Mas há controvérsias, já que os críticos de hoje afirmam que arte é tudo aquilo que se disser que é arte, o que torna dispensável um crítico como eu. De qualquer maneira, não fui convidado para fazer aqui crítica de arte, que é um gênero, como se vê, talvez dispensável; fui convidado para escrever crônicas, que ninguém sabe direito o que é.
Esta última reflexão me deu ânimo novo, porque, se ninguém sabe direito o que é crônica, posso escrever o que me der na telha, sem correr o risco de o chefe de Redação me devolver o original com a observação de que "isto não é crônica". Mas logo caí outra vez no desânimo ao considerar que tenho certa responsabilidade intelectual, não posso ficar escrevendo abobrinhas sob pena de me desmoralizar.
Se é verdade que a crônica é tida como um gênero menor, no meu caso ela corre o risco de ficar menor ainda, se não oferecer ao leitor o que ele supostamente espera de mim, e que eu não sei o que é.
Se esperar que me mostre um homem culto, estou perdido. Um dos traços mais lamentáveis da minha personalidade é a facilidade com que esqueço tudo o que leio, a não ser quando estou invocado com determinado assunto e aí me debruço atentamente sobre o livro, leio e releio cada frase, tomo notas; fora esses casos, nada consigo guardar na memória. Certa vez falei entusiasmado a um amigo do "Coridon", de André Gide, e contei-lhe a história narrada no romance. Semanas depois, nos encontramos: "Leu o livro? Gostou?", perguntei-lhe. E ele: "Você é maluco! A história que me contou não tem nada a ver com o romance de Gide, cara!". É isso aí, quem não tem memória não pode ser culto.
Mas tenho uma atenuante: é próprio dos poetas só guardar na memória o que os comove. Alegarão que nem todos, já que há poetas cultíssimos. De qualquer modo, quem nada guarda na memória tem a possibilidade de estar sempre vendo as coisas pela primeira vez e descobrir nelas -num filme, num quadro, num poema- aspectos inusitados, o que daria validez a um aforismo que forjei há muitos anos numa época em que me dedicava a esse gênero literário e que diz: "Um homem desprevenido vale por dois". Certamente não em certos pontos da cidade do Rio de Janeiro ou de São Paulo.
Como o leitor já deve ter percebido, toda esta lengalenga é para sugerir-lhe que não espere demasiado deste cronista bissexto. Farei o possível para não ser chato nem gaiato demais. Dificilmente evitarei algumas críticas ácidas, pois muitas das coisas que leio nos jornais e vejo na televisão me deixam irritado a resmungar com meus botões. Aqui terei a oportunidade de fazê-lo em público. Por isso, em muitas ocasiões, o leitor não encontrará aqui crônicas propriamente e, sim, resmungos.


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