|
Texto Anterior | Índice
FERREIRA GULLAR
Resmungos
Ao ser convidado a escrever
crônicas para este jornal,
minha primeira reação foi de euforia: vou escrever para um grande jornal! Mas, passado o primeiro momento, veio-me do fundo
da consciência esta pergunta:
mas escrever o quê? E quase telefono para o jornal desistindo.
Sim, eu não moro em São Paulo, logo não poderei me aproveitar dos temas locais, restando-me
falar dos temas nacionais. E
quem sou eu para tratar de tais
temas, que são preponderantemente técnicos, como os econômicos, os jurídicos, os esportivos...?
Sobrariam os temas políticos,
que não exigem tanta especialização, mas requerem estar "por
dentro", enquanto eu estou sempre por fora, já que não me dou
com deputados, senadores, ministros; com prefeitos e governadores, nem se fala!
E presidentes da República? O
único que me convidou para almoçar -e no Palácio da Alvorada- foi José Sarney, mesmo assim porque fomos companheiros de juventude em São Luís. Mas
não os culpo, pois sei muito bem
não haver razão nenhuma para
um presidente da República conversar com poetas que, por definição, vivem nas nuvens. Por que
você acha que Platão os expulsou
de sua República ideal? Costumo
dizer que, se dependesse dos poetas, o mundo estaria na idade da
pedra, já que nem a faca de sílex
teria sido inventada, muito menos a roda, o arado, o avião, o
computador... Nem tampouco
-diga-se a nosso favor- a bomba atômica e o fuzil AR-15.
Assim foi que, quanto mais refletia, mais vontade tinha de desistir. E me dizia: bom de fato é escrever para jornais de menor peso
e circulação, que pouca gente lê e,
conseqüentemente, escreva você o
que escrever, fica por isso mesmo.
É quase como se falasse sozinho
no seu quarto, ou numa mesa de
bar: aí você diz o diabo, esculhamba com os poderosos e famosos sem correr o risco de ter seus
argumentos reduzidos a pó publicamente por um especialista nem
de ser processado por calúnia ou
coisa semelhante.
A verdade é que quanto mais
pensava mais achava que tinha
entrado numa fria. Esse pessoal
da Folha é maluco, por que me fazer um convite desses se eu não
entendo de nada? É verdade que
eu vivo pensando, que chego ao
ponto de ligar o aquecedor para
tomar banho e me esquecer do
banho ou, mergulhado nas minhas reflexões, deixar de me vestir
e sair nu do banheiro. Por tanto
pensar, certa vez mijei na lata de
lixo achando que era o vaso sanitário e, na praia, imerso em cismas, tirei o calção para entrar na
água acreditando que estava em
meu banheiro.
Penso sobre qualquer assunto,
desde uma videoinstalação sacal
que vi no MAM do Rio até a matéria escura que o Stephen Hawking diz preencher a maior parte
do espaço cósmico. É bem possível, ao entrar em meu escritório,
encontrar-me fazendo um discurso contra a teoria do Big Bang:
"Não dá pra acreditar que os bilhões de galáxias que existem hoje
estivessem, no começo do universo, comprimidos numa esfera do
tamanho de uma bola de tênis!".
Por isso mesmo, já na juventude,
mal chegado ao Rio, fui logo apelidado sarcasticamente de "profissional do pensamento". Donde
concluir-se que, como penso sobre
tudo sem de nada entender, posso
adotar a definição que deu de si
mesmo Otto Lara Resende: "Sou
um especialista em idéias gerais".
Dizer que não entendo de nada
é exagero. Aliás, não é aconselhável exagerar na modéstia nem ficar se depreciando em público
porque corre-se o risco de que,
neste ponto, todos concordem
com você. "Se ele mesmo o diz..."
De alguma coisa entendo, creio
eu, de arte, por exemplo, e há pessoas que o admitem. De fato, dediquei -e ainda dedico- a
maior parte de meu tempo intelectual a pensar sobre esse assunto. Já escrevi até livros sobre ele.
Mas há controvérsias, já que os
críticos de hoje afirmam que arte
é tudo aquilo que se disser que é
arte, o que torna dispensável um
crítico como eu. De qualquer maneira, não fui convidado para fazer aqui crítica de arte, que é um
gênero, como se vê, talvez dispensável; fui convidado para escrever
crônicas, que ninguém sabe direito o que é.
Esta última reflexão me deu
ânimo novo, porque, se ninguém
sabe direito o que é crônica, posso
escrever o que me der na telha,
sem correr o risco de o chefe de
Redação me devolver o original
com a observação de que "isto
não é crônica". Mas logo caí outra
vez no desânimo ao considerar
que tenho certa responsabilidade
intelectual, não posso ficar escrevendo abobrinhas sob pena de me
desmoralizar.
Se é verdade que a crônica é tida como um gênero menor, no
meu caso ela corre o risco de ficar
menor ainda, se não oferecer ao
leitor o que ele supostamente espera de mim, e que eu não sei o
que é.
Se esperar que me mostre um
homem culto, estou perdido. Um
dos traços mais lamentáveis da
minha personalidade é a facilidade com que esqueço tudo o que
leio, a não ser quando estou invocado com determinado assunto e
aí me debruço atentamente sobre
o livro, leio e releio cada frase, tomo notas; fora esses casos, nada
consigo guardar na memória.
Certa vez falei entusiasmado a
um amigo do "Coridon", de André Gide, e contei-lhe a história
narrada no romance. Semanas
depois, nos encontramos: "Leu o
livro? Gostou?", perguntei-lhe. E
ele: "Você é maluco! A história
que me contou não tem nada a
ver com o romance de Gide, cara!". É isso aí, quem não tem memória não pode ser culto.
Mas tenho uma atenuante: é
próprio dos poetas só guardar na
memória o que os comove. Alegarão que nem todos, já que há poetas cultíssimos. De qualquer modo, quem nada guarda na memória tem a possibilidade de estar
sempre vendo as coisas pela primeira vez e descobrir nelas
-num filme, num quadro, num
poema- aspectos inusitados, o
que daria validez a um aforismo
que forjei há muitos anos numa
época em que me dedicava a esse
gênero literário e que diz: "Um
homem desprevenido vale por
dois". Certamente não em certos
pontos da cidade do Rio de Janeiro ou de São Paulo.
Como o leitor já deve ter percebido, toda esta lengalenga é para
sugerir-lhe que não espere demasiado deste cronista bissexto. Farei o possível para não ser chato
nem gaiato demais. Dificilmente
evitarei algumas críticas ácidas,
pois muitas das coisas que leio
nos jornais e vejo na televisão me
deixam irritado a resmungar com
meus botões. Aqui terei a oportunidade de fazê-lo em público. Por
isso, em muitas ocasiões, o leitor
não encontrará aqui crônicas
propriamente e, sim, resmungos.
Texto Anterior: Televisão: Atores "treinam" duro em "Alexandre" Índice
|