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MEMÓRIA
Morto na última sexta, aos 89 anos, Gianni Ratto foi considerado um dos sete maiores cenógrafos do mundo
Ratto encerra meio século de aventura teatral
Marlene Bergamo - 12.fev.2004/Folha Imagem
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O diretor, cenógrafo e figurinista Gianni Ratto, um dos responsáveis pela construção do teatro brasileiro moderno, na década de 50 |
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
A entrega do diretor, cenógrafo e figurinista italiano
Gianni Ratto à utopia do teatro
brasileiro sempre foi total, constante e íntegra. Foram 50 anos de
uma aventura que, encerrada só
agora com a sua morte (ocorrida
na última sexta, em São Paulo, aos
89 anos, em razão de um câncer
na bexiga), mostra uma trajetória
que continuará por muito tempo
sendo a pedra de toque de um teatro que sempre teve que se fazer
no precário e no fugaz.
Desde o início, Maria Della Costa, quando chegou em Milão, em
1953, tinha para oferecer pouco
mais que a juventude e a fé em um
teatro em construção. O bastante,
no entanto, para permitir a ousadia de convidar para inaugurá-lo
aquele que lhe foi apontado como
"um dos sete melhores cenógrafos do mundo": Gianni Ratto. De
fato, com 37 anos, Ratto era vice-diretor técnico do Scalla e membro fundador do mítico Piccolo
Teatro, onde havia refinado a prática de servir textos clássicos com
idéias arrojadas (é só conferir, no
site do Piccolo, que conserva em
arquivo seus esboços desde 1947,
seu cenário de 1951 para "A Morte
de Danton" de Buchner).
Ratto chega assim para a aventura da construção do teatro brasileiro moderno tendo na bagagem (sua "Mochila do Mascate",
para retomar o título de sua autobiografia) não só Calderon, Goldoni, Gorki, mas as últimas inovações da dramaturgia européia.
Na verdade, aposta em uma única
bala de seu cartucho para a estréia
brasileira em 1954: "O Canto da
Cotovia" do então pouco conhecido Anouilh, que dirige e cenografa. A importância dessa montagem pode ser medida pelos atores que consagrou: além de Maria
Della Costa, cuja interpretação de
Joana d'Arc chegou a ser imortalizada em estátua, no elenco havia
entre outros Sérgio Britto, Eugênio Kusnet e Fernanda Montenegro.
O que se seguiu ilustra bem a estratégia que viria a ser o sustentáculo do Teatro Brasileiro de Comédia, que também se erguia na
época: a alternância entre novos
autores e peças mais populares,
mas que exigiam técnica apurada.
Assim, Fernanda Montenegro
pôde brilhar tanto na "Moratória", que lançava o jovem dramaturgo Jorge Andrade, quanto no
vaudeville de Feydeau "Com a
Pulga Atrás da Orelha" (ambas
montagens de 1955) e no eterno
clássico brasileiro "O Mambembe" de Arthur de Azevedo, em
1959, ano de fundação do Teatro
dos Sete.
Foram tantas as montagens seminais que uma lista burocrática
e fria não poderia dar conta da
importância de sua presença entre nós. Mais importante é dar a
ele a palavra para expressar seu
princípio mais precioso, o da não
diferenciação entre a obra de arte
e a vida, entre a estética e a ética:
"Nós, os artistas, combatemos a
escuridão à qual os burocratas
nos querem condenar. Pois nosso
produto a arte é um reencontro
com a vida que quer combater esta secular barbárie", escreveu no
número 15 da Revista Camarim,
da Cooperativa Paulista de Teatro. No seu "Antitratado de Cenografia", cujo título é um bom
exemplo de seu espírito de provocação, postula: "O cenógrafo, antes de mais nada, deve ter consciência de seu papel que, em primeiro lugar, é o de colaborador
que põe à disposição do espetáculo sua criatividade, sua cultura,
sua personalidade.... Colaborar
significa dar o melhor de si para
uma causa que tem milhares de
anos de vida e batalhas. Os horizontes estão abertos: é só querer
chegar lá".
Com a consciência tranqüila de
quem soube que nunca desistiu
nem se acomodou em uma causa
tão árdua e pouco valorizada, pôde concluir em sua "Mochila do
Mascate": "A topografia do meu
rosto é na realidade o mapa de novos percursos e, lá no fundo, bem
no fundo, um horizonte está amanhecendo". A preservação da memória de Gianni Ratto é vital como a certeza do sol no meio da
noite.
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