São Paulo, segunda-feira, 02 de janeiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MEMÓRIA

Morto na última sexta, aos 89 anos, Gianni Ratto foi considerado um dos sete maiores cenógrafos do mundo

Ratto encerra meio século de aventura teatral

Marlene Bergamo - 12.fev.2004/Folha Imagem
O diretor, cenógrafo e figurinista Gianni Ratto, um dos responsáveis pela construção do teatro brasileiro moderno, na década de 50


SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

A entrega do diretor, cenógrafo e figurinista italiano Gianni Ratto à utopia do teatro brasileiro sempre foi total, constante e íntegra. Foram 50 anos de uma aventura que, encerrada só agora com a sua morte (ocorrida na última sexta, em São Paulo, aos 89 anos, em razão de um câncer na bexiga), mostra uma trajetória que continuará por muito tempo sendo a pedra de toque de um teatro que sempre teve que se fazer no precário e no fugaz.
Desde o início, Maria Della Costa, quando chegou em Milão, em 1953, tinha para oferecer pouco mais que a juventude e a fé em um teatro em construção. O bastante, no entanto, para permitir a ousadia de convidar para inaugurá-lo aquele que lhe foi apontado como "um dos sete melhores cenógrafos do mundo": Gianni Ratto. De fato, com 37 anos, Ratto era vice-diretor técnico do Scalla e membro fundador do mítico Piccolo Teatro, onde havia refinado a prática de servir textos clássicos com idéias arrojadas (é só conferir, no site do Piccolo, que conserva em arquivo seus esboços desde 1947, seu cenário de 1951 para "A Morte de Danton" de Buchner).
Ratto chega assim para a aventura da construção do teatro brasileiro moderno tendo na bagagem (sua "Mochila do Mascate", para retomar o título de sua autobiografia) não só Calderon, Goldoni, Gorki, mas as últimas inovações da dramaturgia européia. Na verdade, aposta em uma única bala de seu cartucho para a estréia brasileira em 1954: "O Canto da Cotovia" do então pouco conhecido Anouilh, que dirige e cenografa. A importância dessa montagem pode ser medida pelos atores que consagrou: além de Maria Della Costa, cuja interpretação de Joana d'Arc chegou a ser imortalizada em estátua, no elenco havia entre outros Sérgio Britto, Eugênio Kusnet e Fernanda Montenegro.
O que se seguiu ilustra bem a estratégia que viria a ser o sustentáculo do Teatro Brasileiro de Comédia, que também se erguia na época: a alternância entre novos autores e peças mais populares, mas que exigiam técnica apurada. Assim, Fernanda Montenegro pôde brilhar tanto na "Moratória", que lançava o jovem dramaturgo Jorge Andrade, quanto no vaudeville de Feydeau "Com a Pulga Atrás da Orelha" (ambas montagens de 1955) e no eterno clássico brasileiro "O Mambembe" de Arthur de Azevedo, em 1959, ano de fundação do Teatro dos Sete.
Foram tantas as montagens seminais que uma lista burocrática e fria não poderia dar conta da importância de sua presença entre nós. Mais importante é dar a ele a palavra para expressar seu princípio mais precioso, o da não diferenciação entre a obra de arte e a vida, entre a estética e a ética:
"Nós, os artistas, combatemos a escuridão à qual os burocratas nos querem condenar. Pois nosso produto a arte é um reencontro com a vida que quer combater esta secular barbárie", escreveu no número 15 da Revista Camarim, da Cooperativa Paulista de Teatro. No seu "Antitratado de Cenografia", cujo título é um bom exemplo de seu espírito de provocação, postula: "O cenógrafo, antes de mais nada, deve ter consciência de seu papel que, em primeiro lugar, é o de colaborador que põe à disposição do espetáculo sua criatividade, sua cultura, sua personalidade.... Colaborar significa dar o melhor de si para uma causa que tem milhares de anos de vida e batalhas. Os horizontes estão abertos: é só querer chegar lá".
Com a consciência tranqüila de quem soube que nunca desistiu nem se acomodou em uma causa tão árdua e pouco valorizada, pôde concluir em sua "Mochila do Mascate": "A topografia do meu rosto é na realidade o mapa de novos percursos e, lá no fundo, bem no fundo, um horizonte está amanhecendo". A preservação da memória de Gianni Ratto é vital como a certeza do sol no meio da noite.


Texto Anterior: Crítica/Literatura: Livro acende o necessário debate em torno da censura
Próximo Texto: Repercussão
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.