São Paulo, quarta-feira, 02 de janeiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

A foice e o martelo


Qual o sentido daquele simpático e enlouquecido soviético que faz a propaganda para a Net?

CONFORME os anos vão passando, acho que aumenta nossa capacidade de compreender algumas coisas: os próprios limites, por exemplo, e o misto de surpresa e previsibilidade de que é feito o comportamento de nossos semelhantes.
Ao mesmo tempo, crescem à minha volta os sinais de que o mundo se torna mais enigmático, e começa a falar uma linguagem que já não consigo dominar.
Dou alguns exemplos do cotidiano. As tecnologias do telefone celular: desisti de entendê-las, e na verdade nunca me interessei muito por elas. Mas entre um bluetooth e blackberry, não sei nem mesmo se se trata de duas coisas ou de uma coisa só. E será que isso tem algo a ver com a opção, que sou constantemente instado a fazer, entre Vivo, Tim e Telefônica? Quem compete com o quê?
Não conheço anúncios mais chatos do que os de planos de telefonia móvel. As vantagens se superpõem e acumulam, e parece que até dão dinheiro para a gente quando compra um celular desta ou daquela marca.
E como vem aí uma internet 3 ou nova banda larga, não sei bem, prefiro não fazer nada, esperando a poeira baixar. Ela já se acumula, felizmente, sobre meu velho telefoninho Toyota (ou será que um G.E.?) que agora entrou em mudez definitiva, e conhece o destino da minha bicicleta ergométrica e da churrasqueira de teflon.
Mas os anúncios de celular não são os únicos a me deixar, como se diz, "fora da área de comunicação".
Uma rede de TV a cabo e conexão de banda larga tem apresentado, há bons meses, um garoto-propaganda que desafia minhas capacidades de interpretação. É um russo, com o peito coberto de medalhas, em estado de permanente e dançante entusiasmo, convivendo na tela de TV com uma multidão de "clubbers" ou não sei bem o quê. O lema dos anúncios diz que "o mundo é dos nets".
Qual o sentido daquele simpático e enlouquecido soviético? Fiquei pensando que "niet", em russo, quer dizer "não". Estaríamos, assim, diante de um exemplo refinado de dialética marxista? Desenvolvo o raciocínio. Uma das supostas "leis" dos manuais de materialismo histórico estabelecia que tudo se dá pelo mecanismo da "negação da negação".
Teríamos, portanto, um burocrata soviético -exemplo clássico de falta de modernidade tecnológica-representando a Net, exatamente pelo fato de negá-la. É o "não" à modernidade que se veria portanto negado, na medida em que, em vez de "niet", ele simboliza a "net"...
Haveria interpretações ainda mais remotas do que essa. Podemos pensar que o "nerd", o maluco por tecnologia, é um tipo bizarro, uma exceção exótica num ambiente aerodinâmico, veloz e de cabeça fresca como o proposto pelos anúncios dos meios de comunicação.
Nosso burocrata russo seria, portanto, símbolo de originalidade. E também de autocrítica, quem sabe. A concorrência feroz entre sistemas de telefonia e banda larga traz consigo, por parte das empresas interessadas, uma provável nostalgia dos tempos de monopólio.
Há também a registrar as dificuldades, que todo usuário desses sistemas já experimentou, de comunicação com os sistemas de atendimento on-line... As filas de abastecimento dos antigos sistemas socialistas foram substituídas pelos longos minutos de espera ao telefone ouvindo musiquinhas, antes que uma voz humana se disponha a nos ouvir.
Vejo que estou cavocando, entretanto, em camadas de significado pedregosas demais para persuadir quem quer que seja; e meus raciocínios talvez sejam "nerds" demais da conta. Quem sabe tudo tenha uma explicação mais simples. Imagino que a publicidade contemporânea esteja investindo em símbolos que já não têm relação com o produto a ser vendido. Importa que a marca seja memorável, e a estranheza, mais do que a adequação, seria mais útil a esse objetivo.
Assim, surgiu uma agência de publicidade que, em vez de adotar um nome que conotasse os habituais signos de "eficiência" ("JPK", "Módulo" etc.) passou a chamar-se de "África". Por quê? Nada é automático nessa escolha. O fenômeno já vinha de antes. Uma das marcas mais bem-sucedidas do mundo é a "Apple". O que uma maçã tem a ver com modelos de computador? O arbítrio, na verdade, impera. Eles sabem que, martelando bastante, tudo pega na mente do consumidor. É o jeito, na briga de foice da concorrência global. Não deixa, entretanto, de ser um bocado soviético.

coelhofsp@uol.com.br


Texto Anterior: Crítica/DVD/"Exótica": "Exótica" descortina o desejo reprimido
Próximo Texto: Teatro: Festival infantil começa hoje
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.