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MARCELO COELHO
A foice e o martelo
Qual o sentido daquele
simpático e enlouquecido soviético que faz a propaganda para a Net?
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CONFORME os anos vão passando, acho que aumenta
nossa capacidade de compreender algumas coisas: os próprios limites, por exemplo, e o misto
de surpresa e previsibilidade de que
é feito o comportamento de nossos
semelhantes.
Ao mesmo tempo, crescem à minha volta os sinais de que o mundo
se torna mais enigmático, e começa
a falar uma linguagem que já não
consigo dominar.
Dou alguns exemplos do cotidiano. As tecnologias do telefone celular: desisti de entendê-las, e na verdade nunca me interessei muito por
elas. Mas entre um bluetooth e
blackberry, não sei nem mesmo se
se trata de duas coisas ou de uma
coisa só. E será que isso tem algo a
ver com a opção, que sou constantemente instado a fazer, entre Vivo,
Tim e Telefônica? Quem compete
com o quê?
Não conheço anúncios mais chatos do que os de planos de telefonia
móvel. As vantagens se superpõem e
acumulam, e parece que até dão dinheiro para a gente quando compra
um celular desta ou daquela marca.
E como vem aí uma internet 3 ou
nova banda larga, não sei bem, prefiro não fazer nada, esperando a poeira baixar. Ela já se acumula, felizmente, sobre meu velho telefoninho
Toyota (ou será que um G.E.?) que
agora entrou em mudez definitiva, e
conhece o destino da minha bicicleta ergométrica e da churrasqueira
de teflon.
Mas os anúncios de celular não
são os únicos a me deixar, como se
diz, "fora da área de comunicação".
Uma rede de TV a cabo e conexão
de banda larga tem apresentado, há
bons meses, um garoto-propaganda
que desafia minhas capacidades de
interpretação. É um russo, com o
peito coberto de medalhas, em estado de permanente e dançante entusiasmo, convivendo na tela de TV
com uma multidão de "clubbers" ou
não sei bem o quê. O lema dos anúncios diz que "o mundo é dos nets".
Qual o sentido daquele simpático
e enlouquecido soviético? Fiquei
pensando que "niet", em russo, quer
dizer "não". Estaríamos, assim,
diante de um exemplo refinado de
dialética marxista? Desenvolvo o raciocínio. Uma das supostas "leis"
dos manuais de materialismo histórico estabelecia que tudo se dá pelo
mecanismo da "negação da negação".
Teríamos, portanto, um burocrata
soviético -exemplo clássico de falta
de modernidade tecnológica-representando a Net, exatamente pelo fato de negá-la. É o "não" à modernidade que se veria portanto negado,
na medida em que, em vez de "niet",
ele simboliza a "net"...
Haveria interpretações ainda
mais remotas do que essa. Podemos
pensar que o "nerd", o maluco por
tecnologia, é um tipo bizarro, uma
exceção exótica num ambiente aerodinâmico, veloz e de cabeça fresca
como o proposto pelos anúncios dos
meios de comunicação.
Nosso burocrata russo seria, portanto, símbolo de originalidade. E
também de autocrítica, quem sabe.
A concorrência feroz entre sistemas
de telefonia e banda larga traz consigo, por parte das empresas interessadas, uma provável nostalgia dos
tempos de monopólio.
Há também a registrar as dificuldades, que todo usuário desses sistemas já experimentou, de comunicação com os sistemas de atendimento
on-line... As filas de abastecimento
dos antigos sistemas socialistas foram substituídas pelos longos minutos de espera ao telefone ouvindo
musiquinhas, antes que uma voz humana se disponha a nos ouvir.
Vejo que estou cavocando, entretanto, em camadas de significado
pedregosas demais para persuadir
quem quer que seja; e meus raciocínios talvez sejam "nerds" demais da
conta. Quem sabe tudo tenha uma
explicação mais simples. Imagino
que a publicidade contemporânea
esteja investindo em símbolos que já
não têm relação com o produto a ser
vendido. Importa que a marca seja
memorável, e a estranheza, mais do
que a adequação, seria mais útil a esse objetivo.
Assim, surgiu uma agência de publicidade que, em vez de adotar um
nome que conotasse os habituais
signos de "eficiência" ("JPK", "Módulo" etc.) passou a chamar-se de
"África". Por quê? Nada é automático nessa escolha. O fenômeno já vinha de antes. Uma das marcas mais
bem-sucedidas do mundo é a "Apple". O que uma maçã tem a ver com
modelos de computador? O arbítrio,
na verdade, impera. Eles sabem que,
martelando bastante, tudo pega na
mente do consumidor. É o jeito, na
briga de foice da concorrência global. Não deixa, entretanto, de ser um
bocado soviético.
coelhofsp@uol.com.br
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