|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RODAPÉ LITERÁRIO
Refinada delicadeza
Em "Beethoven era 1/16 negro", a Nobel sul-africana Nadine Gordimer explora realismo das relações amorosas
|
CRISTOVÃO TEZZA
COLUNISTA DA FOLHA
AOS 86 anos , Nadine Gordimer
mantém a mesma vitalidade
que a consagrou como uma
das consciências agudas da tragédia
da África do Sul durante o regime de
apartheid. É o que concluímos da
leitura de "Beethoven era 1/16 negro", coletânea de contos recentes
da autora, tratando agora de uma
nova África, em que a questão racial
retorna em escala mais sutil, porém
ainda acorrentada aos seus fantasmas.
No conto que dá título ao livro, um
ex-ativista contra o velho regime
procura se encaixar no "novo padrão de privilégios", correndo atrás
de um antepassado que lhe desse
aquela mágica gota negra -como a
de Beethoven, segundo o orgulhoso
locutor de rádio, ao anunciar um
quarteto para cordas. "Outrora havia negros, pobres-diabos, querendo
ser brancos. Agora há um branco,pobre-diabo, querendo se dizernegro. O segredo é o mesmo."
Se o tema é espinhoso, a linguagem de Gordimer não perde a sua leveza coloquial. O narrador conversa
quase que concretamente com o leitor ("Mas é tudo puro acaso -de que
outra maneira poderia tê-lo encontrado?"), como se em seus relatos
houvesse sempre uma conclusão
perdida a extrair que precisa de nossa ajuda. Às vezes são simples alegorias, como em "Gregor": o célebre
inseto de Kafka reaparece dentro de
sua máquina de escrever, impossível
de ser extirpado.
Em outro momento, "Sonhando
com os mortos", entramos numa ficção onírica, sob um tom de ensaio
ede elegia, em que a autora conversacom Edward Said e Susan Sontag,
e confessa seus limites: "E eu -minhas opiniões e julgamentos estão lá
embaixo, na confusão da vida- não
tenho a perspectiva que os mortos
devem ter atingido".
Mas é no realismo das relações
amorosas, tratadas com uma refinada delicadeza, que a narração deixa
mais nítida a clássica simplicidade
de Nadine Gordimer. Em "Uma beneficiária", Charlotte, a filha de
umaatriz mais conhecida que propriamente famosa descobre umavelha carta que, parece, revela seu verdadeiro pai. Ela vai se aproximando
discretamente dele até descobrir a
verdade, que não tem "nada a ver
com DNA".
Em "Allesverloren", que em africânder significa "tudo perdido",
uma viúva quer conhecer o parceiro
com quem seu velho marido teve
um caso homossexual -mas "o passado é um país estrangeiro", de entrada proibida, como se frisará em
outro momento do livro.
Na ótima parte final, três narrativas investigam o papel dos "sentidos" na traição conjugal. No conto
sobre o olfato, o cachorro fareja a
mulher estranha que se revela
naaura do marido assim que ele
chega em casa, o que dá uma pista à
esposa, na solidão da noite: "Uma
mistura de infusões da misteriosa
química (à) exalando uma flora de
sumos da carne".
BETHOVEN ERA 1/16 NEGRO
Autor: Nadine Gordimer
Tradução: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41,00 (168 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Comentário/DVDs: Regina Casé colhe melhores frutos de nova safra de DVDs Índice
|