São Paulo, sábado, 02 de fevereiro de 2002

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Chabon se enfronha no mundo das HQs

SÉRGIO DÁVILA
DE NOVA YORK

Quando a vetusta comissão do Prêmio Pulitzer da Faculdade de Jornalismo da Universidade Columbia decidiu laurear o escritor Michael Chabon no ano passado por sua ficção "As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay", ele logo pensou que algo estava errado.
O Pulitzer é o mais prestigioso -e sério- prêmio jornalístico e literário dos EUA. E nada menos sério, neste sentido, do que o livro que o escritor havia acabado de lançar. Despretensiosamente, a obra relata a história de dois amigos que, durante a Segunda Guerra, se unem e criam um super-herói para combater os nazistas.
Seu nome é O Escapista, um verdadeiro paradoxo alado, e basta uma lida rápida em "Kavalier & Clay" para entender por que o Pulitzer continua sendo o mais respeitado entre os prêmios: o livro é realmente muito, muito bom.
A história começa quando o polonês Josef Kavalier desembarca na Nova York do final dos anos 30, fugido do gueto judeu de Varsóvia. O menino de 18 anos se encanta com o clima da cidade e encontra em seu primo, Samuel Klayman, um parceiro à altura para sua paixão pela HQ.
Juntos desenvolvem o tal super-herói, que combate o ditador "Attila Haxoff", cujos soldados "razistas" invadiram a "Dracônia", a "Gotsilvânia" e a "Zotênia". Ele é apaixonado por Luna Moth, inspirada na paixão da dupla, a doce Rosa de Luxemburgo Saks.
A invenção faz sucesso, Samuel vira Sammy Clay e é aí que começam as incríveis aventuras de Kavalier e Clay. Curioso notar que, quanto mais Josef fracassa em tirar o resto da família da Europa ocupada, mais O Escapista vai ganhando superpoderes e aliados.
O estilo lembra o de outro livro de Chabon, "Garotos Incríveis", também lançado pela Record.
Chabon nasceu em Washington em 1960 e é um sujeito vaidoso, como atestam suas fotos de divulgação e sua estampa na quarta capa de seus livros. Usa os cabelos à Pedrinho Aguinaga da época do comercial dos cigarros Chanceler e anda sempre impecável. Casado e heterossexual, foi chamado pela revista semanal "Newsweek" de "o próximo grande nome da literatura gay", numa gafe famosa.
Tão famosas embora menos embaraçosas são as comparações que a crítica especializada norte-americana vem fazendo desde que ele lançou seu primeiro romance, "The Mysteries of Pittsburgh" (Os Mistérios de Pittsburgh), em 1989.
"Lembra o J.D.Salinger de "O Apanhador no Campo de Centeio'", "lembra o F. Scott Fitzgerald de "Grande Gatsby'" foram alguns dos epítetos. Ele finge desdenhar e se enfronha cada vez mais no mundo dos quadrinhos.
À época do Pulitzer, Chabon disse à Folha que a HQ "tatuou minha alma com suas cores gritantes". Agora, vem estreitando sua relação com o cinema: adapta "Kavalier & Clay" para o estúdio Paramount, que ainda não tem data para levar o livro às telas.
Leia a seguir os principais trechos de sua entrevista à Folha.

Folha - Qual seria a reação d'O Escapista aos ataques terroristas de 11 de setembro?
Michael Chabon -
Acho que ele, o Super-Homem, o Batman e o resto deles poderiam ter evitado a coisa toda. Pensei muito no personagem Super-Homem enquanto via as cenas dos aviões se chocando contra as torres do World Trade Center. Acho que muitas pessoas pensaram o mesmo...

Folha - Como você chegou ao tema de "Kavalier & Clay"?
Chabon -
Começou com uma caixa de revistas em quadrinhos... Fui um grande leitor de HQ quando era pequeno, dos seis aos 15 anos. Colecionava as revistas, lia e relia e até mesmo criava meus próprios personagens. Então perdi o interesse completamente. Vendi minha coleção e não pensei no tema por uns 15 anos.
Foi quando achei uma caixa escondida que tinha esquecido por todos esses anos. Abri o embrulho, e aquele cheiro invadiu o porão, aquele cheiro de papel velho. Fui tomado por lembranças, uma sensação de que minha infância tinha sido guardada intacta ali. Mais ou menos na mesma época li um artigo sobre o Super-Homem, na revista do Smithsonian, se não me engano, que descrevia como Seigel e Shuster criaram o personagem. Sempre quis escrever algo que pudesse se passar nessa época, dos anos 30 aos 50, a época de ouro da HQ, que sempre me fascinou. Foi aí que pensei: vou fazer um romance sobre quadrinhistas nos anos 40.

Folha - Como foi seu processo de pesquisa? Você nasceu quase 20 anos depois do período que descreve com uma riqueza de detalhes impressionante.
Chabon -
Tive muita sorte de estar vivendo na época em Los Angeles e agora em Berkeley (Califórnia), ambas cidades com bibliotecas incríveis, nas quais eu passava os dias. Além disso, passei um mês em Nova York, tanto em pesquisa de campo, já que é onde a história acontece, quanto na biblioteca da cidade. Afundei-me em edições antigas da (semanal) "New Yorker". Passava dias inteiros folheando as revistas.
Também conhecia muito pouco sobre a arte do escapismo (no sentido da atividade dos mágicos de se livrar de correntes e cadeados, não no sentido moral) quando comecei o livro. Não tinha idéia de que faria parte da história, muito menos uma parte tão determinante como ficou.
Acontece que há uma literatura enorme sobre essa atividade em geral e sobre Harry Houdini em particular. É um material muito rico e estranhamente muito pouco usado em ficção. Tive de me controlar para não deixar o tema ganhar mais espaço do que devia no livro, de tão interessante que é.

Folha - E de onde vem seu interesse por essa época?
Chabon -
Meu pai foi o responsável por fazer com que as primeiras décadas do século passado na América ficassem tão interessantes para mim quando eu era pequeno. Ele era cheio de histórias sobre os shows de rádio, os políticos, os filmes, a música, os esportistas. E, como era do Brooklyn, suas memórias e seu ponto de vista tinham uma perspectiva muito nova-iorquina, que ficou entranhada em mim. Acho que não é por acaso que dediquei "Kavalier & Clay" a Robert Chabon.

Folha - O que vai fazer agora?
Chabon -
Após o roteiro para a Paramount? Trabalho num livro infantil para a editora Talk/Miramax, a ser lançado no outono.

Folha - Por fim, você conhece algo de literatura brasileira?
Chabon -
Li Jorge Amado, é claro. Qualquer um que se considere amante de literatura deveria lê-lo. Além disso, temo dizer que não conheço muito. O que sugere?

Folha - Por que você não começa com o melhor livro do melhor escritor brasileiro, "Epitaph of a Small Winner" ("Memórias Póstumas de Brás Cubas", em inglês), de Machado de Assis? Woody Allen é fã.
Chabon -
[respondendo no dia seguinte" Acabei de comprar o livro. Depois conto o que achei.



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