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NELSON ASCHER
A queda da Bastilha
O relatório do juiz lorde
Brian Hutton, divulgado na
quarta-feira, foi um desastre absoluto -e absolutamente merecido- para a BBC. O que estava
em jogo ia muito além da exatidão de uma reportagem qualquer, e a prova disso, contradizendo o estereótipo da fleuma local, é o debate acalorado que, precedendo sua divulgação, não cessou desde então.
Tudo começou quando Andrew
Gilligan, um jornalista da corporação que, durante a invasão do
Iraque, deixara (como muitos de
seus colegas) suas opiniões prevalecerem sobre os fatos que lhe cabia apresentar, encontrou-se, em
22 de maio do ano passado, com o
perito em armas biológicas dr.
David Kelly.
Uma semana depois, baseando-se na sua interpretação da conversa, o repórter acusou, no programa "Today", a administração
Blair de ter, em seu dossiê sobre o
Iraque publicado em 24 de setembro do ano anterior, intencionalmente "sexed up" (tornado mais
excitante, inflado) o perigo representado por Saddam Hussein,
que seria, segundo o governo, capaz de ativar um arsenal químico
e biológico em 45 minutos. O texto de Gilligan apareceu naquele
dia no site da BBC, e uma versão
mais agressiva deste, na edição de
1º de junho do "Mail on Sunday".
A matéria original era problemática, pois, por exemplo, atribuía a alegação a um anônimo
alto funcionário dos serviços de
inteligência, enquanto Kelly não
passava de um perito científico do
Ministério da Defesa sem acesso
direto às instâncias decisórias responsáveis pela versão final do
dossiê. O assessor de comunicações do governo, Alistair Campbell (personagem odiado pela imprensa), protestou junto à organização, que apoiou integralmente
seu funcionário.
Numa primeira investigação, o
nome do dr. Kelly emergiu como
a única fonte da história e, um
dia após terminar seu depoimento aos parlamentares, ele se suicidou, desencadeando um escândalo nacional. Hutton foi, portanto,
encarregado de conduzir um inquérito acerca das circunstâncias
do suicídio e sobre as afirmações
feitas em nome do cientista.
A decisão tomada pelo primeiro-ministro inglês de se aliar aos
EUA na "guerra contra o terror",
particularmente na batalha do
Iraque, dividira o Reino Unido
em dois campos. Entre os que se
opuseram radicalmente à aliança, estavam os representantes do
velho Labour (partido que Blair
salvara de duas décadas de fracasso eleitoral), a esquerda em geral e alguns Tories (conservadores) que viram no episódio uma
oportunidade para enfraquecer
os trabalhistas.
A oposição esquerdista se fundamentava numa visão de mundo para a qual o verdadeiro inimigo da humanidade não são os
despotismos, em especial os do
Oriente Médio, e o fundamentalismo islâmico, mas sim os Estados Unidos. Embora tal ponto de
vista represente, digamos, 1/5 dos
ingleses, a BBC, uma emissora
pública cujo orçamento bilionário é financiado pelo conjunto da
população, praticamente assumiu o papel de porta-voz dessa
minoria.
Já que os prognósticos apocalípticos a respeito do Afeganistão e
do Iraque acabaram desmentidos
e Bagdá caíra em três semanas, a
corporação, decidida a desmerecer as decisões governamentais,
resolveu transformar o caso dos
"45 minutos" no calcanhar de
Aquiles que exporia à luz do dia a
má-fé do primeiro-ministro.
Que as armas de destruição em
massa não fossem localizadas
tampouco ajudou Londres que,
bem mais do que Washington,
usara-as como uma das justificativas centrais para a invasão.
Apesar de a estimativa possivelmente equivocada destas ter sido
compartilhada pelos principais
serviços de inteligência do planeta, inclusive os de países contrários à guerra, e embora se enganar não seja o mesmo que mentir,
o erro, quem sabe fatal, de Blair
nasceu de sua malograda tentativa de manter relevante a ONU e
unido o bloco ocidental. Não fosse
o semestre inútil de deliberações
onusianas, a questão iraquiana
teria se resolvido antes e sem celeuma alguma em torno do enigmático arsenal.
Acontece que, ao declararem
guerra ao governo endossando o
que disse o jornalista, os executivos da BBC não se prepararam
adequadamente para o confronto
nem verificaram se as esparsas
notas de sua entrevista (não gravada) com Kelly justificavam alegações tão sérias. Na sua ânsia de
pegar a administração em falta,
os executivos cometeram as mesmas das quais a acusavam, isto é,
buscaram encobrir que o repórter
inflara seu próprio dossiê.
Esta, além de inocentar o governo da acusação de má-fé, foi a
conclusão do relatório Hutton, algo que está longe de ser novidade
para quem vinha há anos acompanhando a parcialidade acachapante de uma emissora que
fora, no passado, sinônimo de imparcialidade fidedigna. Caso o
juiz chegasse ao veredicto oposto,
Blair teria caído. Assim, malgrado ninguém e nenhuma lei ou decreto obrigá-los a tanto, nada
mais justo que Greg Dyke, o diretor-geral da instituição, Gavyn
Davies, o presidente de seu conselho (board of governors) e, "last
but not least", Andrew Gilligan se
demitissem, se bem que cada qual
tenha saído deselegantemente e,
como de uma partida de futebol
perdida, xingando o árbitro.
Primeira grande nação da Europa ocidental a abraçar, no fim
da Segunda Guerra, um estado
socializante, a Inglaterra foi
igualmente a primeira a lhe sofrer
as conseqüências nefastas e a
principiar, durante a gestão de
Margaret Thatcher, seu desmantelamento. A BBC, a Bastilha do
antigo regime falido, sobreviveu-a intacta até a semana passada.
Se há uma ironia profunda em
que seja o reanimador do moribundo socialismo britânico quem
a derrubou, o futuro talvez considere este seu melhor legado.
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