São Paulo, segunda-feira, 02 de fevereiro de 2004

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NELSON ASCHER

A queda da Bastilha

O relatório do juiz lorde Brian Hutton, divulgado na quarta-feira, foi um desastre absoluto -e absolutamente merecido- para a BBC. O que estava em jogo ia muito além da exatidão de uma reportagem qualquer, e a prova disso, contradizendo o estereótipo da fleuma local, é o debate acalorado que, precedendo sua divulgação, não cessou desde então.
Tudo começou quando Andrew Gilligan, um jornalista da corporação que, durante a invasão do Iraque, deixara (como muitos de seus colegas) suas opiniões prevalecerem sobre os fatos que lhe cabia apresentar, encontrou-se, em 22 de maio do ano passado, com o perito em armas biológicas dr. David Kelly.
Uma semana depois, baseando-se na sua interpretação da conversa, o repórter acusou, no programa "Today", a administração Blair de ter, em seu dossiê sobre o Iraque publicado em 24 de setembro do ano anterior, intencionalmente "sexed up" (tornado mais excitante, inflado) o perigo representado por Saddam Hussein, que seria, segundo o governo, capaz de ativar um arsenal químico e biológico em 45 minutos. O texto de Gilligan apareceu naquele dia no site da BBC, e uma versão mais agressiva deste, na edição de 1º de junho do "Mail on Sunday".
A matéria original era problemática, pois, por exemplo, atribuía a alegação a um anônimo alto funcionário dos serviços de inteligência, enquanto Kelly não passava de um perito científico do Ministério da Defesa sem acesso direto às instâncias decisórias responsáveis pela versão final do dossiê. O assessor de comunicações do governo, Alistair Campbell (personagem odiado pela imprensa), protestou junto à organização, que apoiou integralmente seu funcionário.
Numa primeira investigação, o nome do dr. Kelly emergiu como a única fonte da história e, um dia após terminar seu depoimento aos parlamentares, ele se suicidou, desencadeando um escândalo nacional. Hutton foi, portanto, encarregado de conduzir um inquérito acerca das circunstâncias do suicídio e sobre as afirmações feitas em nome do cientista.
A decisão tomada pelo primeiro-ministro inglês de se aliar aos EUA na "guerra contra o terror", particularmente na batalha do Iraque, dividira o Reino Unido em dois campos. Entre os que se opuseram radicalmente à aliança, estavam os representantes do velho Labour (partido que Blair salvara de duas décadas de fracasso eleitoral), a esquerda em geral e alguns Tories (conservadores) que viram no episódio uma oportunidade para enfraquecer os trabalhistas.
A oposição esquerdista se fundamentava numa visão de mundo para a qual o verdadeiro inimigo da humanidade não são os despotismos, em especial os do Oriente Médio, e o fundamentalismo islâmico, mas sim os Estados Unidos. Embora tal ponto de vista represente, digamos, 1/5 dos ingleses, a BBC, uma emissora pública cujo orçamento bilionário é financiado pelo conjunto da população, praticamente assumiu o papel de porta-voz dessa minoria.
Já que os prognósticos apocalípticos a respeito do Afeganistão e do Iraque acabaram desmentidos e Bagdá caíra em três semanas, a corporação, decidida a desmerecer as decisões governamentais, resolveu transformar o caso dos "45 minutos" no calcanhar de Aquiles que exporia à luz do dia a má-fé do primeiro-ministro.
Que as armas de destruição em massa não fossem localizadas tampouco ajudou Londres que, bem mais do que Washington, usara-as como uma das justificativas centrais para a invasão. Apesar de a estimativa possivelmente equivocada destas ter sido compartilhada pelos principais serviços de inteligência do planeta, inclusive os de países contrários à guerra, e embora se enganar não seja o mesmo que mentir, o erro, quem sabe fatal, de Blair nasceu de sua malograda tentativa de manter relevante a ONU e unido o bloco ocidental. Não fosse o semestre inútil de deliberações onusianas, a questão iraquiana teria se resolvido antes e sem celeuma alguma em torno do enigmático arsenal.
Acontece que, ao declararem guerra ao governo endossando o que disse o jornalista, os executivos da BBC não se prepararam adequadamente para o confronto nem verificaram se as esparsas notas de sua entrevista (não gravada) com Kelly justificavam alegações tão sérias. Na sua ânsia de pegar a administração em falta, os executivos cometeram as mesmas das quais a acusavam, isto é, buscaram encobrir que o repórter inflara seu próprio dossiê.
Esta, além de inocentar o governo da acusação de má-fé, foi a conclusão do relatório Hutton, algo que está longe de ser novidade para quem vinha há anos acompanhando a parcialidade acachapante de uma emissora que fora, no passado, sinônimo de imparcialidade fidedigna. Caso o juiz chegasse ao veredicto oposto, Blair teria caído. Assim, malgrado ninguém e nenhuma lei ou decreto obrigá-los a tanto, nada mais justo que Greg Dyke, o diretor-geral da instituição, Gavyn Davies, o presidente de seu conselho (board of governors) e, "last but not least", Andrew Gilligan se demitissem, se bem que cada qual tenha saído deselegantemente e, como de uma partida de futebol perdida, xingando o árbitro.
Primeira grande nação da Europa ocidental a abraçar, no fim da Segunda Guerra, um estado socializante, a Inglaterra foi igualmente a primeira a lhe sofrer as conseqüências nefastas e a principiar, durante a gestão de Margaret Thatcher, seu desmantelamento. A BBC, a Bastilha do antigo regime falido, sobreviveu-a intacta até a semana passada.
Se há uma ironia profunda em que seja o reanimador do moribundo socialismo britânico quem a derrubou, o futuro talvez considere este seu melhor legado.



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