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RODAPÉ LITERÁRIO
Tchékhov e a colônia penal
Mesmo quando o fedor de percevejos esmagados e amônia predomina, o escritor não se rende a simplificações
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
EM 1890, aos 30 anos, Anton
Tchékhov (1860-1904) meteu-se por conta e risco próprios numa expedição à remota ilha
de Sacalina, na Sibéria, para conhecer as condições de vida na maior colônia de trabalhos forçados da Rússia, em meio às chibatadas e à corrupção desleixada da burocracia judiciária. Da aventura resultou um livro, "A Ilha de Sacalina", concebido,
na origem, como tese de doutorado
em medicina (chegou a recensear
mais de 10 mil habitantes locais),
mas que, mal recebido pela academia, acabou editado como testemunho privilegiado do que observou o
médico e escritor.
A idéia fixa da viagem, "Mania Sachalinos" na sua definição irônica,
devia tanto a seu espírito científico
aguçado, interesse que combinava
disposição etnológica, uma visão
avançada da medicina social e um
materialismo ferrenho, quanto à
abertura do artista para os aspectos
concretos e singulares da experiência humana, intuindo no mundo
carcerário um microcosmo revelador dos efeitos da arbitrariedade e
da violência que moviam as engrenagens do Estado na Rússia tzarista
sobre os indivíduos.
Conhecido por apanhar no transitório dos gestos cotidianos enredos
completos, o contista e dramaturgo
encontrou farto material na convivência de "forçados", funcionários,
militares e camponeses recém-libertos com instituições falidas e a
natureza siberiana, exuberante e
inóspita -a chuva e neve quase incessantes, temperaturas médias
anuais na casa dos 2C e um sol incapaz de fazer amadurecer os grãos.
"Um Bom Par de Sapatos e um Caderno de Anotações" traz os bastidores da aproximação do autor de
"Tio Vânia" a esta terra de ninguém,
selecionados e apresentados por
Piero Brunello que, a partir da correspondência e diários tchekhóvianos, já havia organizado "Sem Trama e Sem Final: 99 Conselhos de Escrita" (ed. Martins, 2007). Mostra
como seu olhar armado (varreu a literatura contemporânea sobre a região e a organização prisional, logo
descartada como retórica e idealista), cético e insubordinado às restrições oficiais ou amarras ideológicas
soube tirar proveito de um talento
inato para a conversa e a pesquisa.
As cartas e as notas são o rastro do
método por trás da sensibilidade para o detalhe revelador de múltiplos
fenômenos (o apagamento da memória e das identidades individuais
anteriores ao degredo, o desarranjo
nas vidas familiares) e personagens
(como o assassino que mudou de
nome e, descoberto numa tentativa
de fuga, é condenado a cem chibatadas). Mesmo quando o fedor de percevejos esmagados e amônia predomina, Tchékhov não se rende a simplificações, sugere uma realidade
em camadas, de cuja verdade complexa sua arte esteve à altura.
UM BOM PAR DE SAPATOS E UM CADERNO DE ANOTAÇÕES: COMO FAZER UMA REPORTAGEM
Autor: Anton Tchékhov
Tradução: Homero F. de Andrade
Editora: Martins
Quanto: R$ 29,90 (160 págs.)
Avaliação: ótimo
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