São Paulo, sábado, 02 de fevereiro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Tchékhov e a colônia penal

Mesmo quando o fedor de percevejos esmagados e amônia predomina, o escritor não se rende a simplificações

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

EM 1890, aos 30 anos, Anton Tchékhov (1860-1904) meteu-se por conta e risco próprios numa expedição à remota ilha de Sacalina, na Sibéria, para conhecer as condições de vida na maior colônia de trabalhos forçados da Rússia, em meio às chibatadas e à corrupção desleixada da burocracia judiciária. Da aventura resultou um livro, "A Ilha de Sacalina", concebido, na origem, como tese de doutorado em medicina (chegou a recensear mais de 10 mil habitantes locais), mas que, mal recebido pela academia, acabou editado como testemunho privilegiado do que observou o médico e escritor.
A idéia fixa da viagem, "Mania Sachalinos" na sua definição irônica, devia tanto a seu espírito científico aguçado, interesse que combinava disposição etnológica, uma visão avançada da medicina social e um materialismo ferrenho, quanto à abertura do artista para os aspectos concretos e singulares da experiência humana, intuindo no mundo carcerário um microcosmo revelador dos efeitos da arbitrariedade e da violência que moviam as engrenagens do Estado na Rússia tzarista sobre os indivíduos.
Conhecido por apanhar no transitório dos gestos cotidianos enredos completos, o contista e dramaturgo encontrou farto material na convivência de "forçados", funcionários, militares e camponeses recém-libertos com instituições falidas e a natureza siberiana, exuberante e inóspita -a chuva e neve quase incessantes, temperaturas médias anuais na casa dos 2C e um sol incapaz de fazer amadurecer os grãos.
"Um Bom Par de Sapatos e um Caderno de Anotações" traz os bastidores da aproximação do autor de "Tio Vânia" a esta terra de ninguém, selecionados e apresentados por Piero Brunello que, a partir da correspondência e diários tchekhóvianos, já havia organizado "Sem Trama e Sem Final: 99 Conselhos de Escrita" (ed. Martins, 2007). Mostra como seu olhar armado (varreu a literatura contemporânea sobre a região e a organização prisional, logo descartada como retórica e idealista), cético e insubordinado às restrições oficiais ou amarras ideológicas soube tirar proveito de um talento inato para a conversa e a pesquisa.
As cartas e as notas são o rastro do método por trás da sensibilidade para o detalhe revelador de múltiplos fenômenos (o apagamento da memória e das identidades individuais anteriores ao degredo, o desarranjo nas vidas familiares) e personagens (como o assassino que mudou de nome e, descoberto numa tentativa de fuga, é condenado a cem chibatadas). Mesmo quando o fedor de percevejos esmagados e amônia predomina, Tchékhov não se rende a simplificações, sugere uma realidade em camadas, de cuja verdade complexa sua arte esteve à altura.


UM BOM PAR DE SAPATOS E UM CADERNO DE ANOTAÇÕES: COMO FAZER UMA REPORTAGEM
Autor:
Anton Tchékhov
Tradução: Homero F. de Andrade
Editora: Martins
Quanto: R$ 29,90 (160 págs.)
Avaliação: ótimo


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