São Paulo, terça, 2 de fevereiro de 1999

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Há uma inexplicável cisão entre o dito e o feito de FHC

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Que culpa tem FHC nesta grande crise do real? Espantosamente, numa época "tecnicista", o grande culpado foi um mistério de sua personalidade: a recusa sistemática, angustiante, em falar com a população, de explicar o Plano que tinha para o país. Assim, abandonando-nos, ficou isolado também, sem a opinião pública, caindo na esparrela do Congresso e dos fisiológicos da negociação infinita. Um governo que teria de ser "revolucionário", no sentido de mobilizar a afetividade da nação, deixou-a desorientada, à mercê dos inimigos do novo, bombardeada pelos slogans simplistas das oposições.
O presidente só acreditou no "processo" e se recusou a ser pai. "Pai", sim, função secular simbólica de um presidente ibérico, eleito duas vezes com maioria absoluta. "Pai", sim, que nos tinha dado a única coisa real que tivemos em 30 anos: o fim da inflação. O povo ficou carente por um pai ausente, irônico às vezes, sorridente, simpático, mas frio, nos impedindo de participar de um processo ambicioso, o de mudar estruturas seculares de um Estado arcaico. Por ciúme ou narcisismo, FHC nos impediu de participar de seu governo. Desde o surgimento de seu triste porta-voz, passando por clima de tédio e dúvida, ficou claro o erro básico da tal "revolução silenciosa" que o povo não chegou a conhecer.
FH balbucia umas desculpas tipo "não é meu estilo ser populista...", mas não explica. FH não foi ativo, buscando a empatia popular, exigindo, cobrando, inspirando medo. Por um estranhíssimo mecanismo, FH se afastou da aura inevitável que um presidente tem nos trópicos e resolveu sonhar que estava na Suíça, regendo um processo "orgânico". Assim, foi gasto o melhor plano que o país já teve, não só de saneamento econômico, mas de mudança de mentalidade, de enxugamento de instituições antigas, de aproveitamento da globalização para injetar um pouco de "rapidez anglo-saxônica" na alma lenta dos ibéricos.
Os amigos de FH, a quem eu berrava em desespero, me diziam: "Não adianta falar... ele é assim".
Portanto, talvez Freud explique a crise principal do Plano Real -não foi o PFL ou o "imperialismo" ou o Itamar. As causas do erro devem estar lá, 60 anos atrás, na sala de jantar do pai getulista. Já ouço risos de sociólogos, mas talvez seja a explicação. Nesse cassino global, FH acreditou que poderia ser a síntese entre a metrópole e a periferia, que poderia manipular ideologias divergentes em nome da razão.
Acreditou nisso, quando deveria ter cuidado do inconsciente que o traía. FH foi "ibérico" também ao cair num voluntarismo iluminista, tecido de sorrisos, de frases irônicas. FH tem uma clareza impressionante sobre o mundo atual e o Brasil, como se pode ler no livro branco de entrevistas com R. Pompeu de Toledo.
Tem minuciosa consciência dos "grilos" macros e micros que nos assolam, o que absolutamente não "monta" com (por exemplo) sua última frase infeliz: "Não sou homem de confiscos...". Como se estivesse em jogo sua sensatez e não o destino próximo do Brasil. "Não é de confiscos? Tudo bem, presidente, continue a frase; o senhor é "homem de quê?' Diga. Então?" Ele não diz e deixa a população louca nas portas do banco com medo do Collor 2, deixa os filhos desesperados querendo ajudar ou se salvar sem saber como.
FH provoca no povo uma angústia de coito interrompido, a sensação de que as coisas não se completam, não fecham, talvez como o "processo histórico e a não-linearidade do mundo" como ele, culto, acredita. Este "laissezfairismo" político contaminou os ministros. Uma exceção foi Sergio Motta, vivido como "inconveniente", "boquirroto". Na última vez em que falei com Sergio, no enterro do deputado Eduardo Mascarenhas, tive um arrepio de horror. De olhos vermelhos, entre tumbas, ouvi o sanguíneo e apaixonado militante Serjão se queixar: "O Fernando disse que eu estava sendo muito hegeliano...", referindo-se ao finalismo emergencial e impaciente que esse doce Quixote, vestido de Sancho Pança, queria impor ao governo.
Com a sua crença narcísea de que ele era o próprio "processo", FHC frustrou justamente aquilo para que foi eleito: ser uma alternativa crítica à obrigatória marcha do Consenso de Washington, que nos quer como "carneirinhos globalizados". Com a desculpa da complexidade dos rumos do mundo, esqueceu-se dos diferenciais fechados de nossa realidade, da desagradável "tarefa" (no sentido leninista) de contrariar cartilhas financeiras dos USA. Como se explica o mistério de, por exemplo, não ter ouvido seu amigo (competitivo, certo) José Serra, um dos quadros mais competentes de sua turma, que há dois anos se esgoela contra o câmbio supervalorizado, clamando por uma política industrial qualquer?
Serra é "angustiante", pois demanda criticismo, desvio e não a mansa obediência ao capitalismo financeiro. Contra o messianismo do "não", FHC criou um messianismo do "sim". Seu fundo medo do conflito jogou-o dentro de um inferno de conciliações no mundo político rasteiro e micha. De olho na luz, ele desconsiderou os conflitos como picuinhas de "nefelibatas", "nhenhenhéns" que pairavam abaixo de sua "grandeza". Não chamo FHC de "vaidoso". Estes adjetivos simplistas não o explicam. FHC, como ele mesmo disse, é mais inteligente que vaidoso. Mas sua inteligência pode ter virado uma justificativa para a inação. Nelson Rodrigues diria: "Seja burro, FH! Seja burro!".
Lembrando Sergio Buarque, a democracia no Brasil está sendo vivida como dois "mal-entendidos". Mal-entendida por FHC, foi transformada numa idealização teórica, num livre fluxo de todas as tolerâncias, que se anulam num caos indiferenciado. Mal-entendida pelos políticos, a democracia é sinônimo de sabotagens e impunidades. E FHC tem o supremo álibi: "Fiz o que pude dentro da democracia - que posso fazer mais?". "Vítima da democracia" poderá ser a desculpa para seu martírio, ponto de chegada de todos os narcisismos que não dão certo.
Embalada nesta crença "processual", nos rumos "técnicos" da economia e da história, a nossa equipe econômica se deixou levar por um fanatismo monetarista. Sem a liderança alternativa, fizeram todo o "dever de casa" do FMI, sem criar nenhuma estratégia especial para nossa "localidade".
Auto-suficientes, subestimaram também as cascas de banana de nossa anomalia nacional. Esta fé em Chicago lhes fez esquecer da resistência dos loteadores do Estado. Esqueceram da pujança da burrice nacionalistóide e protofascista que vai renascer agora com Itamar Franco criando um projeto populista para as oposições sem rumo. A equipe achou que podia ignorá-los, com gráficos e matemática, enquanto eles agiam na chantagem, com a persistência das toupeiras. Agora, a moeda forte quebrou. E hoje, estamos aí, o governo e a nação, expostos ao jargão dos imbecis, à crítica fácil dos "hegelianos", ao rancor vitorioso dos invejosos da Academia, que nunca puseram a mão na "bosta mental sul-americana". Hoje, estamos aí expostos aos desígnios do sistema financeiro internacional, pronto para entrar e comprar tudo na "bacia das almas", como fazem na Rússia e Tailândia. Hoje, ainda estou eu aí, com uma remota esperança: se FHC ouvisse críticas, talvez tivesse tempo de manter o real vivo.



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