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Há uma inexplicável cisão entre o dito e o feito de FHC
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Que culpa tem FHC nesta
grande crise do real? Espantosamente, numa época "tecnicista", o grande culpado foi um
mistério de sua personalidade:
a recusa sistemática, angustiante, em falar com a população, de explicar o Plano que tinha para o país. Assim, abandonando-nos, ficou isolado
também, sem a opinião pública, caindo na esparrela do
Congresso e dos fisiológicos da
negociação infinita. Um governo que teria de ser "revolucionário", no sentido de mobilizar
a afetividade da nação, deixou-a desorientada, à mercê
dos inimigos do novo, bombardeada pelos slogans simplistas
das oposições.
O presidente só acreditou no
"processo" e se recusou a ser
pai. "Pai", sim, função secular
simbólica de um presidente
ibérico, eleito duas vezes com
maioria absoluta. "Pai", sim,
que nos tinha dado a única coisa real que tivemos em 30 anos:
o fim da inflação. O povo ficou
carente por um pai ausente,
irônico às vezes, sorridente,
simpático, mas frio, nos impedindo de participar de um processo ambicioso, o de mudar estruturas seculares de um Estado arcaico. Por ciúme ou narcisismo, FHC nos impediu de
participar de seu governo. Desde o surgimento de seu triste
porta-voz, passando por clima
de tédio e dúvida, ficou claro o
erro básico da tal "revolução
silenciosa" que o povo não chegou a conhecer.
FH balbucia umas desculpas
tipo "não é meu estilo ser populista...", mas não explica. FH
não foi ativo, buscando a empatia popular, exigindo, cobrando, inspirando medo. Por
um estranhíssimo mecanismo,
FH se afastou da aura inevitável que um presidente tem nos
trópicos e resolveu sonhar que
estava na Suíça, regendo um
processo "orgânico". Assim, foi
gasto o melhor plano que o país
já teve, não só de saneamento
econômico, mas de mudança
de mentalidade, de enxugamento de instituições antigas,
de aproveitamento da globalização para injetar um pouco
de "rapidez anglo-saxônica"
na alma lenta dos ibéricos.
Os amigos de FH, a quem eu
berrava em desespero, me diziam: "Não adianta falar... ele
é assim".
Portanto, talvez Freud explique a crise principal do Plano
Real -não foi o PFL ou o "imperialismo" ou o Itamar. As
causas do erro devem estar lá,
60 anos atrás, na sala de jantar
do pai getulista. Já ouço risos
de sociólogos, mas talvez seja a
explicação. Nesse cassino global, FH acreditou que poderia
ser a síntese entre a metrópole e
a periferia, que poderia manipular ideologias divergentes
em nome da razão.
Acreditou nisso, quando deveria ter cuidado do inconsciente que o traía. FH foi "ibérico" também ao cair num voluntarismo iluminista, tecido
de sorrisos, de frases irônicas.
FH tem uma clareza impressionante sobre o mundo atual e o
Brasil, como se pode ler no livro
branco de entrevistas com R.
Pompeu de Toledo.
Tem minuciosa consciência
dos "grilos" macros e micros
que nos assolam, o que absolutamente não "monta" com (por
exemplo) sua última frase infeliz: "Não sou homem de confiscos...". Como se estivesse em jogo sua sensatez e não o destino
próximo do Brasil. "Não é de
confiscos? Tudo bem, presidente, continue a frase; o senhor é
"homem de quê?' Diga. Então?"
Ele não diz e deixa a população
louca nas portas do banco com
medo do Collor 2, deixa os filhos desesperados querendo
ajudar ou se salvar sem saber
como.
FH provoca no povo uma angústia de coito interrompido, a
sensação de que as coisas não
se completam, não fecham, talvez como o "processo histórico
e a não-linearidade do mundo" como ele, culto, acredita.
Este "laissezfairismo" político
contaminou os ministros. Uma
exceção foi Sergio Motta, vivido como "inconveniente", "boquirroto". Na última vez em
que falei com Sergio, no enterro
do deputado Eduardo Mascarenhas, tive um arrepio de horror. De olhos vermelhos, entre
tumbas, ouvi o sanguíneo e
apaixonado militante Serjão se
queixar: "O Fernando disse
que eu estava sendo muito hegeliano...", referindo-se ao finalismo emergencial e impaciente que esse doce Quixote,
vestido de Sancho Pança, queria impor ao governo.
Com a sua crença narcísea de
que ele era o próprio "processo", FHC frustrou justamente
aquilo para que foi eleito: ser
uma alternativa crítica à obrigatória marcha do Consenso
de Washington, que nos quer
como "carneirinhos globalizados". Com a desculpa da complexidade dos rumos do mundo, esqueceu-se dos diferenciais fechados de nossa realidade, da desagradável "tarefa"
(no sentido leninista) de contrariar cartilhas financeiras
dos USA. Como se explica o
mistério de, por exemplo, não
ter ouvido seu amigo (competitivo, certo) José Serra, um dos
quadros mais competentes de
sua turma, que há dois anos se
esgoela contra o câmbio supervalorizado, clamando por uma
política industrial qualquer?
Serra é "angustiante", pois
demanda criticismo, desvio e
não a mansa obediência ao capitalismo financeiro. Contra o
messianismo do "não", FHC
criou um messianismo do
"sim". Seu fundo medo do conflito jogou-o dentro de um inferno de conciliações no mundo político rasteiro e micha. De
olho na luz, ele desconsiderou
os conflitos como picuinhas de
"nefelibatas", "nhenhenhéns"
que pairavam abaixo de sua
"grandeza". Não chamo FHC
de "vaidoso". Estes adjetivos
simplistas não o explicam.
FHC, como ele mesmo disse, é
mais inteligente que vaidoso.
Mas sua inteligência pode ter
virado uma justificativa para a
inação. Nelson Rodrigues diria: "Seja burro, FH! Seja burro!".
Lembrando Sergio Buarque,
a democracia no Brasil está
sendo vivida como dois "mal-entendidos". Mal-entendida
por FHC, foi transformada numa idealização teórica, num livre fluxo de todas as tolerâncias, que se anulam num caos
indiferenciado. Mal-entendida
pelos políticos, a democracia é
sinônimo de sabotagens e impunidades. E FHC tem o supremo álibi: "Fiz o que pude dentro da democracia - que posso
fazer mais?". "Vítima da democracia" poderá ser a desculpa para seu martírio, ponto de
chegada de todos os narcisismos que não dão certo.
Embalada nesta crença "processual", nos rumos "técnicos"
da economia e da história, a
nossa equipe econômica se deixou levar por um fanatismo
monetarista. Sem a liderança
alternativa, fizeram todo o
"dever de casa" do FMI, sem
criar nenhuma estratégia especial para nossa "localidade".
Auto-suficientes, subestimaram também as cascas de banana de nossa anomalia nacional. Esta fé em Chicago lhes fez
esquecer da resistência dos loteadores do Estado. Esqueceram da pujança da burrice nacionalistóide e protofascista
que vai renascer agora com Itamar Franco criando um projeto populista para as oposições
sem rumo. A equipe achou que
podia ignorá-los, com gráficos
e matemática, enquanto eles
agiam na chantagem, com a
persistência das toupeiras.
Agora, a moeda forte quebrou.
E hoje, estamos aí, o governo e
a nação, expostos ao jargão dos
imbecis, à crítica fácil dos "hegelianos", ao rancor vitorioso
dos invejosos da Academia,
que nunca puseram a mão na
"bosta mental sul-americana".
Hoje, estamos aí expostos aos
desígnios do sistema financeiro
internacional, pronto para entrar e comprar tudo na "bacia
das almas", como fazem na
Rússia e Tailândia. Hoje, ainda estou eu aí, com uma remota esperança: se FHC ouvisse
críticas, talvez tivesse tempo de
manter o real vivo.
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