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WALTER SALLES
Alberto
O aeroporto ainda se parece com o de "Memórias do
Subdesenvolvimento", o filme extraordinário de Tomás Gutiérrez
Alea. No Malecon, a ressaca banha os carros que transitam à beira-mar. Nas esquinas, o mambo
se mistura às melodias cristalinas
de Maria Teresa Vera.
Estamos em Havana e o homem à minha frente é um jovem
de 79 anos. O sorriso é largo; o
olhar, agudo e inteligente. Corpo
ereto, malgrado as pernas arqueadas de quem já jogou (bem)
futebol. Alberto. Ou Mial, como
sempre foi chamado.
Mial tinha um amigo, Fuser.
Contração de Furibundo Serna,
apelido que recebeu por seu destemor no jogo de rúgbi. Há exatos
50 anos, Mial convidou Fuser para um projeto aparentemente
utópico: atravessar a América Latina em uma moto, La Poderosa.
La Poderosa era uma Norton de
1939 que, em 1952, já era uma respeitável peça de museu.
"Essa moto é uma bela desculpa
para vocês saírem por aí a pé",
desconfiou o tio de Fuser. Não
era. Graças à La Poderosa, os dois
jovens saíram de Córdoba, na Argentina, atravessaram a Patagônia e cruzaram os Andes em direção ao Chile. Conheceram o deserto de Atacama, descobriram as
condições desumanas das minas
de cobre de Chuquicamata, encantaram-se com Machu Picchu.
Em Lima, já sem a moto, encontraram dr. Pesce, um médico e intelectual marxista que iria marcá-los para sempre. Como ambos
estudavam medicina e se especializavam em leprologia, Mial e Fuser passaram semanas em uma
colônia de leprosos em San Pablo,
na Amazônia Peruana. Saíram
de lá em uma balsa batizada
"Mambo Tango". Atravessaram
a Colômbia e, finalmente, chegaram a Caracas, Venezuela. Lá se
separaram. Mial ficou trabalhando em um hospital, enquanto Fuser foi para os Estados Unidos antes de voltar à Argentina para terminar os seus estudos.
Os homens que chegaram ao final da aventura não foram os
mesmos jovens que partiram. As
viagens iniciáticas são, muitas vezes, aquelas que definem os caminhos que tomamos. Viagens de
desvendamento, de conhecimento do mundo, de afirmação de potencialidades.
O homem à minha frente se
lembra. Os seus olhos brilham. As
histórias que revive nos impelem,
misteriosamente, para um outro
tempo, que parece tão presente
quanto esse que dividimos no momento em que você lê estas linhas.
Mial nos proporciona relatos
extraordinários. O momento em
que, no meio da névoa que cobre
o amanhecer no rio Amazonas,
uma pequena orquestra composta por músicos leprosos lhes oferece, nos oferece, um concerto de
despedida. Ou o instante em que
Fuser, um rapaz de 23 anos que
sofria de ataques intensos de asma no início da viagem, percebe
que pode cruzar o Amazonas a
nado. À contracorrente.
Há confissões inesperadas. Viram "Stromboli", o filme de Rosselini, e não gostaram. Discutiram literatura, falaram de Faulkner, Sinclair Lewis, Caldwell e outros autores que questionavam a
hipocrisia da sociedade norte-americana. O choque da realidade latino-americana foi se tornando cada vez mais forte. Foram educados pelo que viram, a
exploração dos índios, dos homens do campo. Debateram a importância da medicina socializada. E concordaram com o fato de
que movimentos envoltos em roupagens aparentemente nacionalistas, como o peronismo, eram
essencialmente autoritários,
quando não neonazistas.
Mial tem humor. Muito humor.
Rápido exemplo: em Lautaro, pequena cidade chilena, os dois jovens conheceram duas bioquímicas brasileiras. Mial convidou
uma delas para passear perto de
um lago. "Depois de falar de bioquímica, passamos de mútuo
acordo à anatomia topográfica.
Espero não ter chegado à embriologia."
Se é verdade que, a cada instante, somos ao mesmo tempo aquilo
que já fomos e aquilo que um dia
seremos, então o jovem Mial sobrevive e pulsa no homem de 79
anos que sorri à nossa frente. Já o
jovem Fuser não está mais aqui.
Depois dessa primeira aventura,
empreendeu mais duas viagens
através da América Latina. Em
1959, mostra ao mundo que a
utopia é possível. Com Fidel Castro e um grupo de revolucionários
cubanos, derruba a ditadura de
Fulgencio Batista. Envolve-se na
luta revolucionária na África. É
assassinado na Bolívia, em 1967.
Deixa de ser o Fuser, ou Ernesto
Guevara de la Serna, para ser
simplesmente "Che".
Agora, o homem que foi imortalizado pela história e pelas lentes
de Korda revive na memória de
seu amigo Mial. Pode-se matar
um homem, mas não suas idéias,
lembra Mial -ou Alberto Granado. Essas idéias se propagam,
se multiplicam, e não há nada
que possa ceifá-las.
Passamos três dias com Mial.
Registramos o final de um filme.
Aprendemos constantemente
com ele. Chega a hora da despedida. Mial pega a mão de uma pessoa da pequena equipe de filmagem. Dança um tango com ela.
Graças a ele, somos todos, por alguns momentos, jovens de 20
anos e temos o orgulho de sermos
latino-americanos.
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