São Paulo, sábado, 02 de março de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

WALTER SALLES

Alberto

O aeroporto ainda se parece com o de "Memórias do Subdesenvolvimento", o filme extraordinário de Tomás Gutiérrez Alea. No Malecon, a ressaca banha os carros que transitam à beira-mar. Nas esquinas, o mambo se mistura às melodias cristalinas de Maria Teresa Vera.
Estamos em Havana e o homem à minha frente é um jovem de 79 anos. O sorriso é largo; o olhar, agudo e inteligente. Corpo ereto, malgrado as pernas arqueadas de quem já jogou (bem) futebol. Alberto. Ou Mial, como sempre foi chamado.
Mial tinha um amigo, Fuser. Contração de Furibundo Serna, apelido que recebeu por seu destemor no jogo de rúgbi. Há exatos 50 anos, Mial convidou Fuser para um projeto aparentemente utópico: atravessar a América Latina em uma moto, La Poderosa. La Poderosa era uma Norton de 1939 que, em 1952, já era uma respeitável peça de museu.
"Essa moto é uma bela desculpa para vocês saírem por aí a pé", desconfiou o tio de Fuser. Não era. Graças à La Poderosa, os dois jovens saíram de Córdoba, na Argentina, atravessaram a Patagônia e cruzaram os Andes em direção ao Chile. Conheceram o deserto de Atacama, descobriram as condições desumanas das minas de cobre de Chuquicamata, encantaram-se com Machu Picchu.
Em Lima, já sem a moto, encontraram dr. Pesce, um médico e intelectual marxista que iria marcá-los para sempre. Como ambos estudavam medicina e se especializavam em leprologia, Mial e Fuser passaram semanas em uma colônia de leprosos em San Pablo, na Amazônia Peruana. Saíram de lá em uma balsa batizada "Mambo Tango". Atravessaram a Colômbia e, finalmente, chegaram a Caracas, Venezuela. Lá se separaram. Mial ficou trabalhando em um hospital, enquanto Fuser foi para os Estados Unidos antes de voltar à Argentina para terminar os seus estudos.
Os homens que chegaram ao final da aventura não foram os mesmos jovens que partiram. As viagens iniciáticas são, muitas vezes, aquelas que definem os caminhos que tomamos. Viagens de desvendamento, de conhecimento do mundo, de afirmação de potencialidades.
O homem à minha frente se lembra. Os seus olhos brilham. As histórias que revive nos impelem, misteriosamente, para um outro tempo, que parece tão presente quanto esse que dividimos no momento em que você lê estas linhas.
Mial nos proporciona relatos extraordinários. O momento em que, no meio da névoa que cobre o amanhecer no rio Amazonas, uma pequena orquestra composta por músicos leprosos lhes oferece, nos oferece, um concerto de despedida. Ou o instante em que Fuser, um rapaz de 23 anos que sofria de ataques intensos de asma no início da viagem, percebe que pode cruzar o Amazonas a nado. À contracorrente.
Há confissões inesperadas. Viram "Stromboli", o filme de Rosselini, e não gostaram. Discutiram literatura, falaram de Faulkner, Sinclair Lewis, Caldwell e outros autores que questionavam a hipocrisia da sociedade norte-americana. O choque da realidade latino-americana foi se tornando cada vez mais forte. Foram educados pelo que viram, a exploração dos índios, dos homens do campo. Debateram a importância da medicina socializada. E concordaram com o fato de que movimentos envoltos em roupagens aparentemente nacionalistas, como o peronismo, eram essencialmente autoritários, quando não neonazistas.
Mial tem humor. Muito humor. Rápido exemplo: em Lautaro, pequena cidade chilena, os dois jovens conheceram duas bioquímicas brasileiras. Mial convidou uma delas para passear perto de um lago. "Depois de falar de bioquímica, passamos de mútuo acordo à anatomia topográfica. Espero não ter chegado à embriologia."
Se é verdade que, a cada instante, somos ao mesmo tempo aquilo que já fomos e aquilo que um dia seremos, então o jovem Mial sobrevive e pulsa no homem de 79 anos que sorri à nossa frente. Já o jovem Fuser não está mais aqui. Depois dessa primeira aventura, empreendeu mais duas viagens através da América Latina. Em 1959, mostra ao mundo que a utopia é possível. Com Fidel Castro e um grupo de revolucionários cubanos, derruba a ditadura de Fulgencio Batista. Envolve-se na luta revolucionária na África. É assassinado na Bolívia, em 1967. Deixa de ser o Fuser, ou Ernesto Guevara de la Serna, para ser simplesmente "Che".
Agora, o homem que foi imortalizado pela história e pelas lentes de Korda revive na memória de seu amigo Mial. Pode-se matar um homem, mas não suas idéias, lembra Mial -ou Alberto Granado. Essas idéias se propagam, se multiplicam, e não há nada que possa ceifá-las.
Passamos três dias com Mial. Registramos o final de um filme. Aprendemos constantemente com ele. Chega a hora da despedida. Mial pega a mão de uma pessoa da pequena equipe de filmagem. Dança um tango com ela. Graças a ele, somos todos, por alguns momentos, jovens de 20 anos e temos o orgulho de sermos latino-americanos.


Texto Anterior: A obra
Próximo Texto: Panorâmica - Patrocínio: MinC destina R$ 2,7 mi para artes cênicas
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.