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As águas de março dando trégua ao verão
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Bar do porto de Fernando de
Noronha. Fim de tarde. Os
barcos devolvem os turistas
com nadadeiras coloridas,
snorkels, câmeras de filmar.
Instrutores de mergulho consultam seus computadores de
pulso para rever seu trabalho
diário e os cilindros de ar comprimido são depositados ruidosamente no cimento. Aves
disputam peixes com os pescadores de linha e o sol se põe
atrás das imensas montanhas
de pedra.
Penso: esse movimento continua o tempo todo, mas, para
mim, o verão está acabando.
Segunda recomeça o trabalho
num ritmo intenso e, daqui em
diante, só me resta ver a água
esfriar gradativamente até as
desertas piscinas de julho.
Que verão foi este? Ironicamente democrático. Foi tão
quente, que todos adotamos o
uniforme do morro: short e
sandálias havaianas, o modo
mais inteligente de vestir. Bem
que os produtores de sandálias
intuíram essa igualdade e produziram, há uns dois anos,
uma cor exclusiva para clientes especiais: o branco.
Mas a segregação pictórica
não tinha futuro. O branco
tornou-se uma cor como as outras e surgiram outras, mais
brilhantes que deixaram o
branco no chinelo.
Outro aspecto da democratização viajaria nas nuvens do
El Niño. Nós que víamos os pobres na televisão, chorando a
perda de seus barracos, passamos a perder casas e apartamentos e os jornais noturnos se
encheram de profissionais liberais lamentando seus bens
que rolaram água abaixo.
Vi um Santana ser destruído
em questão de minutos, e alguns livros caros se perderam
com a chuva. As páginas colaram e é difícil suportar o mau
cheiro que exala delas, quando
tentamos descolá-las. Heidegger jamais poderia imaginar
que seu ensaio sobre Nietzsche
iria feder tanto, aos pés da estante num país latino.
Foi também um verão de
perdas eletrônicas. Os aparelhos não suportaram os bruscos cortes de luz e entraram em
pane. Computadores e periféricos se tornaram incompatíveis
com a própria realidade, os liquidificadores trituraram os
certificados de garantia.
O mais perturbador é que,
apesar de tudo, foi um verão
bonito em muitos lugares do
Brasil. E talvez quatro graus
mais quente. Os golfinhos continuaram chegando às 6h em
sua enseada, e os machos faziam um triângulo nas águas
azul-turquesa perseguindo
uma única fêmea. As tartarugas continuaram a se reproduzir em muitos lugares, e mesmo
os tubarões ainda conseguem
resistir em Fernando de Noronha -ou, quem sabe, foram se
concentrar nas águas em torno
do Atol das Rocas.
Não há nada a reclamar: cascas de coco, sapos atropelados
no asfalto, uma febre do dengue. Nesse ritmo chegaremos
às águas de março: é pau, é pedra, é o fim do caminho.
O problema dos versos de
Tom é que as águas de março
vêm para fechar o verão. O
ideal é que o verão se fechasse
sem elas. Precisamos de uma
dose final de beleza tranquila,
algo que nos dê saudade de um
verão menos trágico.
E nós, de também tempo, para pensar em mudanças. É terrível se sentir tão despreparado, tão cigarra tropical. Que
na sua beleza ele desperte um
sentimento de formiga, que o
inverno, em alguns países, soube tão bem suscitar.
Era preciso que a gente aplicasse aquela lei: tudo o que pode molhar acabara se molhando, tudo o que pode entupir
acabara se entupindo, tudo
que poderá desabar acabara
desabando, tudo o que poderia
queimar, infelizmente, acabara se queimando.
Isso daria a um imenso programa de trabalho, em todos
os níveis, o mínimo de previsibilidade, que na verdade já
existe em alguns pontos como
o elogiado plano de Blumenau
para enfrentar os efeitos do El
Niño.
Só assim o verão deixaria
suas marcas para além do
bronzeado da pele, romances
casuais e cinematográficos crepúsculos. É uma estação bonita demais para se associar ao
horror de casas caindo, ruas
transbordando e matas ardendo pateticamente, monitoradas por um distante e impotente satélite.
Proponho um conselho de verão formado por todos que gostam dele e querem melhorar
sua imagem para que as novas
gerações possam desfrutá-lo,
vivendo suas primeiras grandes paixões, seus primeiros
mergulhos, primeiros encontros com os golfinhos e possam
coabitar em paz com os tubarões nas piscinas azuis de Fernando de Noronha.
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