São Paulo, Sexta-feira, 02 de Abril de 1999
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CRÍTICA
Engomadinho, puritano e cheio de merchandising

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Tudo tem limite. Se tivesse de ser localizado em algum ponto do universo, o filme "Uma Carta de Amor" poderia ficar sobre uma linha imaginária e improvável entre os territórios do que pode haver de mais engomadinho, convencional, bem-comportado e asseado e de mais extraordinariamente grotesco. Uma combinação que costuma ser cara ao público americano que aplaude o ex-chefe das Forças Armadas na festa do Oscar.
Baseado no best seller "Message in a Bottle", de Nicholas Sparks, "Uma Carta de Amor" é obviamente um filme comercial. Mas não apenas por almejar o grande público, que não é nenhum pecado. "Uma Carta de Amor" é um filme sem pecados, espiritual e puro, embora literalmente comercial, com uma mão especialmente pesada para o merchandising.
Os personagens começam voando de American Airlines, sem que o espectador entenda de onde para onde e por que (a mãe, que mora em Chicago, abre o filme dentro de um avião, levando o filho para visitar o pai, em Chicago!), e não param de voar de American Airlines até o final -ou melhor, só param quando sentem sede e precisam tomar uma Budweiser.
Também nunca um trailer foi tão fidedigno ao filme que anuncia (e "Carta de Amor" não passa do próprio trailer estendido por duas horas): uma jornalista divorciada em férias encontra uma garrafa numa praia. Dentro da garrafa, ela acha uma carta de amor. Movida mais por "determinação pessoal" do que por espírito jornalístico, ela sai à procura do homem ideal que escreveu a carta e acaba dando de cara com Kevin Costner.
"Uma Carta de Amor" é o equivalente, no cinema, de uma música new age. Aquele relaxamento e bem-estar diante dos elementos (o mar, a água, o ar, nas asas da American Airlines) e o amor. Um conto da carochinha para adultos, com diálogos infames do tipo: Robin Wright Penn: (linda e sonsa) "Este barco está em mau estado?"; Kevin Costner: (só tonto) "Não. Está abandonado e subestimado."; Penn: (lânguida) "Sei como é isso."
São diálogos que têm o constrangimento de um primeiro encontro de dois pudicos contendo seus impulsos mais animais. Porque "Uma Carta de Amor" deve ser dos filmes mais puritanos de toda a história do cinema. Não há sexo quase até o final (Kevin Costner ainda está muito abalado pela morte da mulher há dois anos para poder pensar nisso), só companheirismo de fim-de-semana: jantar a luz de vela, passeio de barco ao pôr-do-sol etc. O que parece provar que esse amor, por ser tão espiritual, é mais "verdadeiro".
Enfim, o ideal do casal americano imaculado pelos "bons" valores de uma sociedade tão pura e decente. E, para quem meia palavra basta, como toda história de amor tão espiritual, esta aqui também só poderia terminar no além.
Kevin Costner não está aí por engano. Já faz tempo que o ator tenta encarnar e vender um modelo de homem americano simples, ligado às raízes, fiel, de fibra e de bons sentimentos. Só que, se não tomar cuidado e continuar fazendo filmes como este, vai ter de aguentar a pecha de burro também.

Filme: Uma Carta de Amor
Produção: EUA, 1999
Direção: Luis Mandoki
Com: Kevin Costner, Robin Wright Penn e Paul Newman
Quando: a partir de hoje, nos cines Eldorado 2, Gazetinha, Cinearte 1 e circuito



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