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CRÍTICA
Engomadinho, puritano e cheio de merchandising
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
Tudo tem limite. Se tivesse de ser
localizado em algum ponto do universo, o filme "Uma Carta de
Amor" poderia ficar sobre uma linha imaginária e improvável entre
os territórios do que pode haver de
mais engomadinho, convencional,
bem-comportado e asseado e de
mais extraordinariamente grotesco. Uma combinação que costuma
ser cara ao público americano que
aplaude o ex-chefe das Forças Armadas na festa do Oscar.
Baseado no best seller "Message
in a Bottle", de Nicholas Sparks,
"Uma Carta de Amor" é obviamente um filme comercial. Mas
não apenas por almejar o grande
público, que não é nenhum pecado. "Uma Carta de Amor" é um filme sem pecados, espiritual e puro,
embora literalmente comercial,
com uma mão especialmente pesada para o merchandising.
Os personagens começam voando de American Airlines, sem que
o espectador entenda de onde para
onde e por que (a mãe, que mora
em Chicago, abre o filme dentro de
um avião, levando o filho para visitar o pai, em Chicago!), e não param de voar de American Airlines
até o final -ou melhor, só param
quando sentem sede e precisam
tomar uma Budweiser.
Também nunca um trailer foi tão
fidedigno ao filme que anuncia (e
"Carta de Amor" não passa do
próprio trailer estendido por duas
horas): uma jornalista divorciada
em férias encontra uma garrafa
numa praia. Dentro da garrafa, ela
acha uma carta de amor. Movida
mais por "determinação pessoal"
do que por espírito jornalístico, ela
sai à procura do homem ideal que
escreveu a carta e acaba dando de
cara com Kevin Costner.
"Uma Carta de Amor" é o equivalente, no cinema, de uma música
new age. Aquele relaxamento e
bem-estar diante dos elementos (o
mar, a água, o ar, nas asas da American Airlines) e o amor. Um conto
da carochinha para adultos, com
diálogos infames do tipo: Robin
Wright Penn: (linda e sonsa) "Este
barco está em mau estado?"; Kevin
Costner: (só tonto) "Não. Está
abandonado e subestimado.";
Penn: (lânguida) "Sei como é isso."
São diálogos que têm o constrangimento de um primeiro encontro
de dois pudicos contendo seus impulsos mais animais. Porque
"Uma Carta de Amor" deve ser dos
filmes mais puritanos de toda a
história do cinema. Não há sexo
quase até o final (Kevin Costner
ainda está muito abalado pela
morte da mulher há dois anos para
poder pensar nisso), só companheirismo de fim-de-semana: jantar a luz de vela, passeio de barco
ao pôr-do-sol etc. O que parece
provar que esse amor, por ser tão
espiritual, é mais "verdadeiro".
Enfim, o ideal do casal americano imaculado pelos "bons" valores
de uma sociedade tão pura e decente. E, para quem meia palavra
basta, como toda história de amor
tão espiritual, esta aqui também só
poderia terminar no além.
Kevin Costner não está aí por engano. Já faz tempo que o ator tenta
encarnar e vender um modelo de
homem americano simples, ligado
às raízes, fiel, de fibra e de bons
sentimentos. Só que, se não tomar
cuidado e continuar fazendo filmes como este, vai ter de aguentar
a pecha de burro também.
Filme: Uma Carta de Amor
Produção: EUA, 1999
Direção: Luis Mandoki
Com: Kevin Costner, Robin Wright Penn e
Paul Newman
Quando: a partir de hoje, nos cines
Eldorado 2, Gazetinha, Cinearte 1 e circuito
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