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São Paulo, sexta-feira, 02 de maio de 2003

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CINEMA

Hector Babenco ("Carandiru") e Fernando Meirelles ("Cidade de Deus") falam sobre seus filmes, que tratam da violência e são fenômeno de público

Perigosamente juntos

João Wainer/Folha Imagem
Os cineastas Hector Babenco (à esq.) e Fernando Meirelles


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Os cineastas Fernando Meirelles ("Cidade de Deus") e Hector Babenco ("Carandiru") levaram 5,3 milhões de pessoas aos cinemas brasileiros, desde agosto do ano passado, quando o longa-metragem de Meirelles estreou.
Com 3,3 milhões de espectadores, "Cidade de Deus" está se despedindo da carreira nas salas -segue em cartaz em apenas sete. "Carandiru", lançado no mês passado, estabeleceu novo recorde de público na estréia de um filme brasileiro (468.293 espectadores), acumula até agora 2 milhões de espectadores e deve ser visto por pelo menos mais 1 milhão.
O sucesso de público dos dois títulos é um fenômeno na história recente do cinema brasileiro. Em 2002, foram lançados 31 longas nacionais. Apenas dez deles ultrapassaram a marca de cem mil espectadores. Além de "Cidade de Deus", só mais um título -"Xuxa e os Duendes"- venceu a barreira de 1 milhão.
"Carandiru" e "Cidade de Deus" têm em comum (além do sucesso popular) o fato de serem baseados em obras literárias que refletem sobre a violência urbana brasileira. O filme de Meirelles inspira-se no livro homônimo de Paulo Lins, que reconstitui três décadas de história do narcotráfico na favela carioca Cidade de Deus.
"Estação Carandiru", em que o médico Drauzio Varella relata sua experiência no atendimento a presidiários da Casa de Detenção de São Paulo, é o ponto de partida e de chegada do filme de Babenco.
A convite da Folha, os dois diretores se encontraram anteontem em São Paulo, para cotejar semelhanças e diferenças de suas obras e de suas maneiras de filmar. A seguir, trechos da conversa.
 
SUCESSO DE PÚBLICO

Babenco - Quando a gente tem um produto -o que é fundamental- e marketing apropriado, agressivo, sem medo, o filme tem muito mais chances de acontecer.
Posso citar vários filmes brasileiros interessantes dos últimos dois anos que não aconteceram, porque o público não ficou sabendo que tinha que ver esses filmes.
Eles não tiveram um grau de exposição, de marketing, que é o único chamariz que o espectador tem hoje, sem informações prévias. Muito mais ainda no caso do Fernando [Meirelles", que fez um filme baseado num livro que não foi um sucesso popular, porque é muito complexo, muito difícil.

Meirelles - [Um filme de" Um diretor desconhecido, sem nenhum ator conhecido.

Babenco - E faz esse sucesso?!? Pegou o público de surpresa. Mas teve um trabalho de marketing no qual foi investido muito dinheiro. Você não faz um lançamento como o de "Cidade de Deus" ou o de "Carandiru" colocando duas cópias no Espaço Unibanco e uma em Santos e esperando ver o que acontece, quantos espectadores vão ver o filme.
Você tem que criar um evento, como o cinema internacional cria cada vez que lança um filme. Nesse sentido, a participação da Rede Globo tem um mérito gigante.

Meirelles - Aproximadamente 25% do valor do orçamento de "Cidade de Deus" foi para o lançamento, incluindo a mídia da Globo. Fora esse valor, que de fato é um bom valor para o filme brasileiro, acho que [o que deu resultado" foi a estratégia.
A gente não tinha nada para pôr no cartaz. Naquele momento, eu achava que o público brasileiro não queria ver violência. Esse tema, que levou o público, para mim é o que iria afastá-lo.
Optamos por mostrar "Cidade de Deus" de graça para 20 mil pessoas antes de vender o primeiro ingresso. A gente confiava no poder de boca a boca do filme.
Quando estreou, todo mundo conhecia alguém que já tinha visto o filme. Isso ajuda. Não é só o dinheiro [que determina o resultado". É o dinheiro e inteligência no lançamento.

O TEMA DA VIOLÊNCIA

Babenco - Acho que o público está muito carente de saber quem são essas pessoas que estão cometendo tantas barbaridades, a céu aberto, impunemente, no cotidiano das grandes cidades, ao contrário do que o Fernando [Meirelles" temia.
Eu fui muito alertado que abaixasse o facho, porque o público não quer sair de casa para ver violência. E se comprovou ser justo o contrário. Saber quem são as pessoas que exercem violência intriga tanto quem tem dois carros blindados como aquele que espera quarta-feira para pagar R$ 4 pelo ingresso.
Esses são filmes referenciais, ao querer entender quem somos, como vivemos, como nos relacionamos, quem é o outro. Acredito piamente nisso.

Meirelles - Concordo. Acho que esse filme, cinco anos atrás, não faria esse sucesso. A sociedade amadureceu mesmo. Está interessada em conhecer e em mudar. Nesse sentido, o tema ajuda.

A CRÍTICA

Babenco - [Para Meirelles" Acho que você levou mais porrada do que eu nessa área. Eu estava, de certa forma, respaldado num livro de muito prestígio, escrito por um médico.
Como me defendo um pouco? Digo: adaptei um livro de um homem que dedicou não 15 dias ou um ano a fazer uma pesquisa, mas que está há 14 anos fazendo medicina naquele local. É a experiência dele, transparente, não-judicante das histórias que ele ouviu.
O que a imprensa não consegue aceitar, nem do filme do Fernando [Meirelles" nem no meu, é que são filmes de ficção, que aquilo é uma forma figurativa, chamada cinema, de contar uma história.
Por que o ladrão tem que ser o cara que cospe no outro ou que dá uma punhalada no momento em que você pergunta como ele se chama, por mais que ele tenha cometido crimes hediondos fora do presídio?

Meirelles - Sobre a crítica da banalização da violência em "Cidade de Deus", digo que a banalidade da violência está no livro. Não só no livro, como nas comunidades do Rio. No ano passado, morreram 68 garotos assassinados na Cidade de Deus.
Enquanto filmamos, foram perto de 23 garotos assassinados. Alguém dizia: "Hoje mataram dois". Ficávamos 20 segundos pensando: "Puxa, mataram ali". No momento seguinte, estávamos trabalhando, rindo. Ou seja, é banal.
Até a equipe, que não estava acostumada, depois de dois, três meses, ouvia tiro, reconhecia que era tiro e voltava a trabalhar. O filme não espetaculariza nada.

ESTILO

Meirelles - [Para Babenco" Você pensa na audiência quando está filmando? Pensa: "Vou fazer isso aqui, porque vai funcionar". Você tem sempre esse público virtual?

Babenco - Nunca. Não consigo imaginar quem é o público.

Meirelles - Eu penso o tempo inteiro no espectador assistindo. Tento me colocar fora do filme, para vê-lo como o espectador.



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