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MARCELO COELHO
Meu Frias
Alguns dias ele reservava para nos tirar da acomodação. Mostrava-se incontentável
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NÃO ENTENDO nada dos signos
do zodíaco, mas sei que aos
nascidos sob a influência de
Saturno se atribui um temperamento melancólico, amigo da noite e da
introspecção.
Deve haver um signo oposto para
aquelas personalidades feitas de pura energia, que não vivem sem emiti-la por todos os poros, cujo poder
de irradiação, por assim dizer, parece infinitamente superior às qualidades, que sempre me foram mais
familiares, da absorção, da escuta e
do silêncio.
Conhecer Octavio Frias de Oliveira foi, para mim, no começo, um
choque térmico, diante do qual eu
me encolhi com um misto de medo e
desconfiança. Vindo de uma família
de profissionais liberais, com boas
tintas de esquerda no currículo, eu
nunca tinha convivido com um empresário em carne e osso.
"Seu" Frias (chamá-lo de "sr.
Frias" me parece tão estranho quanto o "dr." que ele abominava) simplesmente não parava quieto. Enquanto todos nós, 50 anos mais moços do que ele, nos espalhávamos
pelas poltronas (nunca muito confortáveis, é bom que se diga) do nono
andar da Folha, "seu" Frias ia de
um lado para outro, com um aparelhinho preso à cintura. Era um
"passômetro", badulaque em voga
naqueles meados da década de 80,
destinado a medir a quilometragem percorrida pelo usuário ao
longo do dia. Sem dúvida, ele batia
seguidamente seus próprios recordes. Como a própria Folha, aliás,
que ele nunca deixava descansar.
Todo funcionário há de preferir
um chefe ordeiro, previsível, apegado à rotina. Isso era impossível
no nono andar. Opiniões formadas
e sacramentadas sobre um assunto
eram reexaminadas e postas de cabeça para baixo num prazo vertiginoso, típico de uma personalidade
em que se misturavam o máximo
de mobilidade intuitiva e de obstinação ferrenha.
As convicções, entretanto, não
mudavam: liberdade de mercado,
justiça social, democracia e igualdade de direitos sempre foram
pontos de honra do jornal e do seu
"publisher", que, entretanto, preferia ver o detalhe da circunstância
concreta a obedecer preceitos abstratos. Como não apoiar o congelamento de preços, na emergência e
no furor do Plano Cruzado, mesmo
ferindo a doutrina liberal?
É que "seu" Frias percebia antes
de todos nós as mudanças na meteorologia econômica e política. O
que tomávamos, às vezes, como o
impulso de nos desconcertar não
provinha dele, mas dos próprios fatos, naqueles anos de tumulto econômico e incerteza política.
Alguns dias ele reservava especialmente para nos tirar da acomodação. Mostrava-se incontentável;
lembro-me de um almoço em que
me senti cutucado além da conta.
Reagi da maneira que conhecia naquele tempo: navegando impassível ao longo do dia, em pompas silenciosas de iceberg. Ele veio me
procurar. Encurralou-me com os
braços a um canto da parede, pedindo-me desculpas, com uma humildade inconcebível para um homem de 80 anos diante do menino
que eu era, e do filho que, como me
disse, eu lhe parecia ser.
Por alguma coincidência, as pessoas da Folha eram altíssimas naquele tempo. Bóris Casoy, antes
que eu conhecesse o seu coração de
criança, assustava-me pelo tamanho de urso. Carlos Eduardo Lins
da Silva tinha o porte e o bigode de
um oficial prussiano. O cortejo, a
caminho dos almoços de sexta-feira, prosseguia com Carlos Brickmann e Adilson Laranjeira, colossais editores da "Folha da Tarde".
"Seu" Frias era atarracado, compacto, inquieto e rápido. Gilberto
Dimenstein rememorou com precisão, na segunda passada, o tipo de
presença, quase anônima, que tinha o "publisher" da Folha nos
elevadores. Recordo-me de ver um
funcionário da casa indicando a
outro, por meio de sinais, que
aquele era o patrão. "Seu" Frias estava de costas também para mim,
dando a ver uma particularidade física que me sensibilizava muito,
não sei por quê: as pontas, muito
aparadas, de seu cabelo branquíssimo. Lembravam-me, talvez, as suíças do tio Patinhas. Por frieza, orgulho, reserva, nunca tive o gesto
de tocá-las, que ele compreenderia.
Mas quando ele virava de perfil
eu via uma pele lacerada de rugas
em todas as direções, entrecruzada
de golpes fundíssimos. Talvez estivesse aí o segredo de sua mobilidade sem descanso, de seu sucesso
como homem de ação: não importa
o que tivesse acontecido, ele seguia
em frente e só pensava no futuro. É
o que a Folha tem de fazer agora.
coelhofsp@uol.com.br
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