São Paulo, quarta-feira, 02 de maio de 2007

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MARCELO COELHO

Meu Frias


Alguns dias ele reservava para nos tirar da acomodação. Mostrava-se incontentável

NÃO ENTENDO nada dos signos do zodíaco, mas sei que aos nascidos sob a influência de Saturno se atribui um temperamento melancólico, amigo da noite e da introspecção.
Deve haver um signo oposto para aquelas personalidades feitas de pura energia, que não vivem sem emiti-la por todos os poros, cujo poder de irradiação, por assim dizer, parece infinitamente superior às qualidades, que sempre me foram mais familiares, da absorção, da escuta e do silêncio.
Conhecer Octavio Frias de Oliveira foi, para mim, no começo, um choque térmico, diante do qual eu me encolhi com um misto de medo e desconfiança. Vindo de uma família de profissionais liberais, com boas tintas de esquerda no currículo, eu nunca tinha convivido com um empresário em carne e osso.
"Seu" Frias (chamá-lo de "sr. Frias" me parece tão estranho quanto o "dr." que ele abominava) simplesmente não parava quieto. Enquanto todos nós, 50 anos mais moços do que ele, nos espalhávamos pelas poltronas (nunca muito confortáveis, é bom que se diga) do nono andar da Folha, "seu" Frias ia de um lado para outro, com um aparelhinho preso à cintura. Era um "passômetro", badulaque em voga naqueles meados da década de 80, destinado a medir a quilometragem percorrida pelo usuário ao longo do dia. Sem dúvida, ele batia seguidamente seus próprios recordes. Como a própria Folha, aliás, que ele nunca deixava descansar.
Todo funcionário há de preferir um chefe ordeiro, previsível, apegado à rotina. Isso era impossível no nono andar. Opiniões formadas e sacramentadas sobre um assunto eram reexaminadas e postas de cabeça para baixo num prazo vertiginoso, típico de uma personalidade em que se misturavam o máximo de mobilidade intuitiva e de obstinação ferrenha.
As convicções, entretanto, não mudavam: liberdade de mercado, justiça social, democracia e igualdade de direitos sempre foram pontos de honra do jornal e do seu "publisher", que, entretanto, preferia ver o detalhe da circunstância concreta a obedecer preceitos abstratos. Como não apoiar o congelamento de preços, na emergência e no furor do Plano Cruzado, mesmo ferindo a doutrina liberal?
É que "seu" Frias percebia antes de todos nós as mudanças na meteorologia econômica e política. O que tomávamos, às vezes, como o impulso de nos desconcertar não provinha dele, mas dos próprios fatos, naqueles anos de tumulto econômico e incerteza política. Alguns dias ele reservava especialmente para nos tirar da acomodação. Mostrava-se incontentável; lembro-me de um almoço em que me senti cutucado além da conta.
Reagi da maneira que conhecia naquele tempo: navegando impassível ao longo do dia, em pompas silenciosas de iceberg. Ele veio me procurar. Encurralou-me com os braços a um canto da parede, pedindo-me desculpas, com uma humildade inconcebível para um homem de 80 anos diante do menino que eu era, e do filho que, como me disse, eu lhe parecia ser.
Por alguma coincidência, as pessoas da Folha eram altíssimas naquele tempo. Bóris Casoy, antes que eu conhecesse o seu coração de criança, assustava-me pelo tamanho de urso. Carlos Eduardo Lins da Silva tinha o porte e o bigode de um oficial prussiano. O cortejo, a caminho dos almoços de sexta-feira, prosseguia com Carlos Brickmann e Adilson Laranjeira, colossais editores da "Folha da Tarde".
"Seu" Frias era atarracado, compacto, inquieto e rápido. Gilberto Dimenstein rememorou com precisão, na segunda passada, o tipo de presença, quase anônima, que tinha o "publisher" da Folha nos elevadores. Recordo-me de ver um funcionário da casa indicando a outro, por meio de sinais, que aquele era o patrão. "Seu" Frias estava de costas também para mim, dando a ver uma particularidade física que me sensibilizava muito, não sei por quê: as pontas, muito aparadas, de seu cabelo branquíssimo. Lembravam-me, talvez, as suíças do tio Patinhas. Por frieza, orgulho, reserva, nunca tive o gesto de tocá-las, que ele compreenderia.
Mas quando ele virava de perfil eu via uma pele lacerada de rugas em todas as direções, entrecruzada de golpes fundíssimos. Talvez estivesse aí o segredo de sua mobilidade sem descanso, de seu sucesso como homem de ação: não importa o que tivesse acontecido, ele seguia em frente e só pensava no futuro. É o que a Folha tem de fazer agora.

coelhofsp@uol.com.br


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