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LIVROS
Crítica/"Zazie no Metrô"
Francês reinventa linguagem em aventura "mal-comportada"
"Zazie no Metrô", de Raymond Queneau, exibe jornada de criança por Paris
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Ela não caça pipas no
Afeganistão nem enfrenta feitiçarias do mal
na forma de garoto bruxo na
Inglaterra. Ao contrário das
crianças-modelo da "literatura" contemporânea, Zazie é,
para começo de conversa, uma
menina mal-comportada. Da
sua boca saltam xingamentos a
cada dupla de páginas e ela é
desobediente, fujona e só quer
saber de uma coisa quando chega a Paris para ficar com um tio:
descer aos subterrâneos.
É nessa descida (ou desejo
de) que se concentra "Zazie no
Metrô", romance-labirinto-poção mágica publicado pelo escritor francês Raymond Queneau em 1959, adaptado por
Louis Malle para o cinema no
ano seguinte e cuja retradução
para o português por Paulo
Werneck acaba de ser lançada
pela Cosac Naify.
Vanguardas
Queneau trafegou em círculos vanguardistas desde os anos
20, quando passou a frequentar
o grupo surrealista, do qual assimilou o espírito de ruptura
criativa e de provocação em sua
obra. No fim dos anos 40, seus
"Exercícios de Estilo", nos
quais reinventava um pequeno
relato uma centena de vezes e
demonstrava que em sua concepção a produção literária era
sinônimo de testar limites, fizeram repercutir sua assinatura.
No fim da década seguinte,
"Zazie no Metrô" tornou-se um
enorme sucesso de vendas e
desmentiu as teses de resistência do leitor comum a romances de invenção de linguagem.
Entre os antepassados mais
evidentes deste romance estão
o "Ulisses" de James Joyce e os
dois "Alice" de Lewis Carroll.
Do primeiro, Queneau absorveu a inventividade linguística,
promovendo uma ruptura de
hierarquia entre texto e fala por
meio da absorção, na escrita, de
sonoridades da linguagem oral.
É o que faz proliferar em "Zazie no Metrô" palavras-sons
tais como "djins", "rambrãs",
"Sãgermãdeprê", que se seguem ao "Doukipundonktan"
que abre o relato (deliciosamente convertido num "dondekevemtantofedô" na tradução de Paulo Werneck).
Em Carroll, o escritor francês foi buscar a epopeia infantil
por mundos em que a lógica é
posta em suspenso, em que
uma criança vagueia sem o controle de adultos e lá encontra
uma sucessão de tipos extravagantes e fora da ordem.
Sem esquecer que foi também um usuário compulsivo de
palavras-valise, as duplicações
(ou triplicações) de sentido que
Queneau também promove em
expressões como "hormossecsual" ou "rapturista".
Porém, é mais nos deslocamentos que nas fusões (ou nas
confusões) que o escritor produziu novidade. Se há um típico
desrespeito às normas da linguagem na escrita, há ainda
mais uma desconcertante presença de tipos humanos "inadequados" em torno da criança
Zazie: travestis, pedófilos, ninfomaníacas.
E há, sobretudo, a inversão
da cidade. Ao contrário do que
seu título anuncia, o sonhado
passeio de Zazie pelo metrô
não acontece em razão de uma
greve dos "funcionários de alicates perfurantes".
É na superfície, portanto, que
Zazie vai se aventurar, se perder, ser encontrada. Sem precisar andar de metrô para conhecer os subterrâneos da cidade,
Zazie a percorre como se descascasse uma cebola, descobrindo sob cada camada que
nada é o que parece.
ZAZIE NO METRÔ
Autor: Raymond Queneau
Tradução: Paulo Werneck
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 45 (192 págs.)
Avaliação: ótimo
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