|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MERCADO EDITORIAL
Tradutores da obra de Tolkien processam editora para a qual trabalharam e pedem direito autoral
"Senhor dos Anéis" vira caso de Justiça
LUÍS FERRARI
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
A Torre de Babel tem vivido dias
agitados. A normalmente plácida
comunidade dos tradutores
acompanha com apreensão o desenrolar de um processo tramitando atualmente nos corredores
da Justiça de São Paulo.
Responsáveis pela tradução para o português da trilogia "O Senhor dos Anéis", Lenita Maria Rimoli Esteves e Almiro Pisetta entraram com ação contra a editora
Martins Fontes, que publicou a
obra do romancista inglês J.R.R.
Tolkien (1892-1973).
A dupla diz que foi contratada
no início dos anos 90 para o trabalho e que não recebeu mais nenhum tostão depois que a tradução foi concluída. A Martins Fontes se defende com a afirmação de
que esse é o procedimento corrente de todas as editoras, pagar
os tradutores por empreitada, não
proporcionalmente às vendas de
suas traduções.
Em abril deste ano, os tradutores ganharam a primeira batalha.
Em decisão inédita, a 37ª Vara Cível de São Paulo condenou a Martins Fontes a pagar 5% sobre o valor de cada exemplar vendido.
O montante ultrapassaria fácil
os R$ 600 mil, tendo como base os
mais de 360 mil exemplares dos
romances de Tolkien que a editora diz à Folha ter vendido, desde a
publicação da primeira edição da
tradução, em 1994. Recentemente
a Martins Fontes recorreu, e a
própria tradutora, Lenita Rimoli,
diz que "muita água ainda vai rolar debaixo dessa ponte".
Alexandre Martins Fontes, publisher da editora que leva seus
sobrenomes, diz que há 30 anos
sua empresa lida da mesma forma
com as traduções, sem nunca ter
tido problemas com isso: paga-se
por um trabalho fechado.
Editores ouvidos pela Folha, como Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, e Roberto Feith,
da Objetiva, disseram que esse é o
"modus operandi" normal da remuneração aos tradutores. "Em
99,9% dos casos se paga por empreitada, não com direitos autorais", diz Feith. "Em casos extremos, quando o tradutor é um nome extremamente reconhecido
na ficção, como um [Carlos Heitor] Cony, é possível negociar que
o tradutor fique com uma proporção pequena das vendas, que
gira em torno de 1%."
Os advogados dos tradutores
usaram como base para sua ação
a lei de direitos autorais de 1998, que possibilita que o
tradutor seja considerado também um autor.
Renato Franco Campos, que advoga pela dupla com José Rogério
Cruz e Tucci, diz que o desconhecimento da lei é a explicação pelo
número baixíssimo de ações de
tradutores contra editoras até
aqui. "Muitas vezes o tradutor
nem sabe que é titular de direito
autoral. Ele acha que é contratado
para prestar um serviço. A editora
também deve achar isso. Creio
que não houve má-fé da empresa.
Mas, diferentemente do que
acontece com os autores, que têm
mais margem de negociação para
procurar outra editora, o tradutor
é hipossuficente na relação com a
empresa", diz Campos.
O mesmo desconhecimento da
lei é o argumento dos tradutores
para explicar por que só entraram
na Justiça agora, mais de dez anos
depois de contratados -e depois
que o livro virou um fenômeno de
vendas, sobretudo depois de sua
versão nos cinemas. Martins Fontes fala em "oportunismo", alegando que Rimoli e Pisetta já fizeram outros trabalhos para a editora dele (obras de pequena vendagem) e que não pediram remuneração extra na Justiça.
"Sem dúvida, o sucesso dos filmes influenciou", reconhece Tucci. "Depois disso a editora deveria
ter chamado os tradutores e feito
um novo ajuste. Faltou colocar no
papel a cessão de direitos, que não
pode ser feita por contratação
verbal e se presume onerosa."
Ainda que não divulgado pela
imprensa até agora, o caso vem
sendo acompanhado com atenção pelos tradutores. Heloisa
Gonçalves Barbosa, presidente do
Sindicato Nacional dos Tradutores, diz que o episódio "Senhor
dos Anéis" pode mudar a situação
da classe no país.
"É preciso que todos os tradutores tomem essa coragem [de entrar na Justiça]: será somente pela
ação conjunta de milhares de tradutores em todo o Brasil que será
possível pôr efetivamente em prática a legislação existente -que,
em si, é muito boa", afirma.
Ainda que não existam dados
concretos de quantos tradutores
existam hoje no país estima-se
que sejam os brasileiros uma das
maiores comunidades do planeta.
O livro "Língua, Poetas e Bacharéis - Uma Crônica da Tradução
no Brasil" (Rocco), que a tradutora de "Harry Potter", Lia Wyler,
lançou no ano passado, mostra
que nos Estados Unidos os livros
traduzidos ficam entre 2,5 e 3%
do mercado local. No Brasil esse
número chega a 80%.
Tradutores e editores (além de
Frodo, Gandalf e companhia) esperam os próximos capítulos.
Texto Anterior: Festival: Menos político, Campos do Jordão retorna ao erudito Próximo Texto: Direito de tradutor existe há 173 anos Índice
|