São Paulo, quarta-feira, 02 de junho de 2004

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MERCADO EDITORIAL

Tradutores da obra de Tolkien processam editora para a qual trabalharam e pedem direito autoral

"Senhor dos Anéis" vira caso de Justiça

LUÍS FERRARI
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

A Torre de Babel tem vivido dias agitados. A normalmente plácida comunidade dos tradutores acompanha com apreensão o desenrolar de um processo tramitando atualmente nos corredores da Justiça de São Paulo.
Responsáveis pela tradução para o português da trilogia "O Senhor dos Anéis", Lenita Maria Rimoli Esteves e Almiro Pisetta entraram com ação contra a editora Martins Fontes, que publicou a obra do romancista inglês J.R.R. Tolkien (1892-1973).
A dupla diz que foi contratada no início dos anos 90 para o trabalho e que não recebeu mais nenhum tostão depois que a tradução foi concluída. A Martins Fontes se defende com a afirmação de que esse é o procedimento corrente de todas as editoras, pagar os tradutores por empreitada, não proporcionalmente às vendas de suas traduções.
Em abril deste ano, os tradutores ganharam a primeira batalha. Em decisão inédita, a 37ª Vara Cível de São Paulo condenou a Martins Fontes a pagar 5% sobre o valor de cada exemplar vendido.
O montante ultrapassaria fácil os R$ 600 mil, tendo como base os mais de 360 mil exemplares dos romances de Tolkien que a editora diz à Folha ter vendido, desde a publicação da primeira edição da tradução, em 1994. Recentemente a Martins Fontes recorreu, e a própria tradutora, Lenita Rimoli, diz que "muita água ainda vai rolar debaixo dessa ponte".
Alexandre Martins Fontes, publisher da editora que leva seus sobrenomes, diz que há 30 anos sua empresa lida da mesma forma com as traduções, sem nunca ter tido problemas com isso: paga-se por um trabalho fechado.
Editores ouvidos pela Folha, como Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, e Roberto Feith, da Objetiva, disseram que esse é o "modus operandi" normal da remuneração aos tradutores. "Em 99,9% dos casos se paga por empreitada, não com direitos autorais", diz Feith. "Em casos extremos, quando o tradutor é um nome extremamente reconhecido na ficção, como um [Carlos Heitor] Cony, é possível negociar que o tradutor fique com uma proporção pequena das vendas, que gira em torno de 1%."
Os advogados dos tradutores usaram como base para sua ação a lei de direitos autorais de 1998, que possibilita que o tradutor seja considerado também um autor.
Renato Franco Campos, que advoga pela dupla com José Rogério Cruz e Tucci, diz que o desconhecimento da lei é a explicação pelo número baixíssimo de ações de tradutores contra editoras até aqui. "Muitas vezes o tradutor nem sabe que é titular de direito autoral. Ele acha que é contratado para prestar um serviço. A editora também deve achar isso. Creio que não houve má-fé da empresa. Mas, diferentemente do que acontece com os autores, que têm mais margem de negociação para procurar outra editora, o tradutor é hipossuficente na relação com a empresa", diz Campos.
O mesmo desconhecimento da lei é o argumento dos tradutores para explicar por que só entraram na Justiça agora, mais de dez anos depois de contratados -e depois que o livro virou um fenômeno de vendas, sobretudo depois de sua versão nos cinemas. Martins Fontes fala em "oportunismo", alegando que Rimoli e Pisetta já fizeram outros trabalhos para a editora dele (obras de pequena vendagem) e que não pediram remuneração extra na Justiça.
"Sem dúvida, o sucesso dos filmes influenciou", reconhece Tucci. "Depois disso a editora deveria ter chamado os tradutores e feito um novo ajuste. Faltou colocar no papel a cessão de direitos, que não pode ser feita por contratação verbal e se presume onerosa."
Ainda que não divulgado pela imprensa até agora, o caso vem sendo acompanhado com atenção pelos tradutores. Heloisa Gonçalves Barbosa, presidente do Sindicato Nacional dos Tradutores, diz que o episódio "Senhor dos Anéis" pode mudar a situação da classe no país.
"É preciso que todos os tradutores tomem essa coragem [de entrar na Justiça]: será somente pela ação conjunta de milhares de tradutores em todo o Brasil que será possível pôr efetivamente em prática a legislação existente -que, em si, é muito boa", afirma.
Ainda que não existam dados concretos de quantos tradutores existam hoje no país estima-se que sejam os brasileiros uma das maiores comunidades do planeta. O livro "Língua, Poetas e Bacharéis - Uma Crônica da Tradução no Brasil" (Rocco), que a tradutora de "Harry Potter", Lia Wyler, lançou no ano passado, mostra que nos Estados Unidos os livros traduzidos ficam entre 2,5 e 3% do mercado local. No Brasil esse número chega a 80%.
Tradutores e editores (além de Frodo, Gandalf e companhia) esperam os próximos capítulos.


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