São Paulo, quinta-feira, 02 de junho de 2005

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Com críticas à igreja, o artista argentino León Ferrari provocou enorme polêmica em seu país; em SP, ele debate sua obra

Entre a CRUZ e a ESPADA

Divulgação/"Clarín"
Obra de León Ferrari exibida em Buenos Aires, em mostra que foi suspensa, depois de protestos e ameaças de bomba


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Obras destruídas, agressores detidos pela polícia, artista acusado de crime, ameaças de bomba, polêmica nacional.
Uma escalada de fatos aquém e além da dimensão artística perpassou a primeira retrospectiva realizada na Argentina da obra de León Ferrari, 85, considerado por boa parcela da crítica como o mais importante artista plástico vivo de seu país.
A reação apaixonada que a mostra despertou na Igreja Católica -cuja influência é o principal tema das reflexões e das críticas do artista- deverá ser um dos assuntos abordados por Ferrari em São Paulo, onde participa de debate sobre sua obra, no próximo domingo.
A retrospectiva de seus 50 anos de carreira (1954-2004) foi aberta no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, no final de 2004. Tinha a previsão de se estender até fevereiro passado. Mas acabou sendo encerrada duas semanas antes do previsto, a pedido do próprio Ferrari.
Ele achou que não era correto submeter os funcionários do centro de exposições à pressão psicológica de conviver com as sucessivas e cada vez mais freqüentes ameaças de bomba registradas no local e sua conseqüente rotina de evacuações imediatas.
Quando o fim antecipado da mostra foi anunciado, as serpenteantes filas de espectadores cresceram ainda mais. O Centro Cultural Recoleta fechou as portas da exposição "Retrospectiva: Obras (1954-2004)" com um recorde de visitação.
Mais de 50 mil pessoas observaram as obras que fizeram o cardeal Jorge Bergoglio, primaz da Argentina, classificar a mostra de "blasfema".

Inferno
As peças que mais chocaram os manifestantes católicos -que invadiram algumas vezes o lugar, sozinhos ou em grupo, aos gritos de "Viva, Cristo Rei"- são aquelas que representam o inferno habitado por santos e apóstolos.
Ferrari descreve o processo que o levou a criar essas peças: "O que fiz foi repetir o inferno, tal como ele foi ilustrado pelos grandes mestres do passado, os pintores da igreja, como Michelangelo e Giotto. Só que, em vez de colocar lá gente como nós, pus os principais seguidores de Cristo, aqueles que inventaram ou promoveram a imagem do inferno".
Com esse artifício, o artista pretendia chamar a atenção para o fato de que "nossa cultura, muito influenciada pela religião, tem a característica do castigo ao diferente, essa discriminação dos maus", sendo que "os "maus" são todos, menos aqueles católicos cumpridores dos mandamentos".
Pelo teor de sua obra, Ferrari foi acusado de incitar o ódio religioso. Uma ação na Justiça argentina pediu o fechamento da exposição, com o argumento de que um local pertencente ao Estado, como é o caso do Centro Cultural Recoleta, não pode abrigar obras ofensivas a uma parte da cidadania.

Desagravo
Com o debate público instalado e grande atenção da imprensa, a mostra chegou a ser suspensa por uma liminar na Justiça, até que a decisão final autorizasse seu prosseguimento.
No entretempo, houve missas em desagravo à Igreja, celebradas no adro da Paróquia do Pilar, onde uma pequena multidão resistiu à chuva com cânticos e orações.
A paróquia é contígua ao Centro Cultural Recoleta, e seu entorno foi também o cenário do ato popular em apoio a Ferrari, que reuniu outra pequena multidão, desta vez pontuada por rostos e nomes conhecidos da cena artística argentina. O artista compareceu e foi recebido triunfalmente.
Incentivada pela polêmica da mostra, a sociedade argentina começou a discutir o laço do país, oficialmente católico, com a religião. Há pouco tempo aboliu-se na Argentina a exigência de que o presidente do país seja católico.
Durante a mostra, dez obras de Ferrari foram atiradas ao chão, por visitantes indignados. O artista determinou que seus estilhaços fossem reunidos e continuassem em exposição, rebatizados de "Obrigado, Cardeal Bergoglio".
Ferrari não lamenta a destruição de suas obras. Aliás, trata os ataques como acréscimo, não subtração. "As coisas que saem do atelier ganham existência com as observações e até com os insultos que recebem. Isso passa a ser parte delas, a complementá-las", diz.
Por entender que os agressores desempenham o papel de acrescentar marcas à sua obra, Ferrari os trata com outra distinção. "De certa forma, são meus colaboradores." Quando se refere ao que faz, no entanto, este engenheiro de formação evita a nomenclatura própria da arte. "Arte é uma palavra muito assim...", diz, como quem se distrai da explicação.
A justificativa, no entanto, vem logo, com as sombras de um fantasma religioso: "Não considero a arte divina, como a maioria dos artistas".


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