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CONTARDO CALLIGARIS
O Ocidente inimigo de si mesmo
Vou expor três idéias nas
quais é provável que você se
reconheça parcial ou totalmente.
Eu mesmo já devo ter escrito e assinado embaixo alguma versão
delas.
1) Nossa cultura é mecânica,
desprovida de alma. Sabemos encontrar os meios mais adequados
para chegar ao resultado desejado e as formas mais econômicas
de funcionamento, mas não sabemos nos orientar quanto aos fins.
Somos pior que cínicos; somos
ocos, fascinados pela racionalidade abstrata, idólatras da eficiência.
2) As grandes cidades modernas, nosso lugar preferido de moradia ("moradia" é um jeito de
falar), são frívolas, mentirosas,
arrogantes, ávidas, decadentes e
cosmopolitas no pior sentido: nelas, perde-se o valor de nossa história e de nossas raízes. Nelas, cada um se torna engrenagem no
grande jogo social urbano: a caça
ao poder conferido pelo olhar invejoso dos outros.
Quem sabe, longe de nossas Babilônias, no campo ou num Terceiro Mundo primitivo e incontaminado por nossa cultura, a gente
possa redescobrir a autenticidade
perdida. Em comunhão com a
natureza, preocupados com a
produção do necessário para a
subsistência, e não com a ostentação do supérfluo, reencontraríamos o sentido da comunidade, a
fé e o amor sincero.
Não vai ser fácil. O campo que
prospera se parece com uma Barretos de telenovela. E os bolsões
da pobreza rural ou terceiro-mundista se assemelham cada
vez mais a favelas suburbanas
que devoram DVDs piratas de filmes hollywoodianos.
Talvez Deus nos ajude, saia de
seu silêncio e lance seus relâmpagos contra as torres das Sodomas
e Gomorras de hoje. Mas os "sucessos" dos inimigos da cidade
moderna são efêmeros. Mao Tsé-tung tentou acabar com a cidade
chinesa; resultado: Xangai é o
ímã das migrações internas na
China de nossos dias.
Deve haver uma conspiração
para destruir o que é autêntico,
espiritual e profundo, um complô
que começou com os banqueiros
de Londres e continua com os de
Nova York -embora, por definição, os banqueiros sejam sem pátria, não é?
3) Na fogueira das vaidades de
nossa vida, as ambições que nos
atormentam podem ser desmedidas, mas elas são sempre mesquinhas. Somos uma civilização de
mercantes preocupados com o
próprio bem-estar, incapazes de
heroísmo.
Durante a Primeira Guerra
Mundial, Werner Sombart, o sociólogo alemão, inventou um termo para estigmatizar o espírito
mercantil dos franceses e dos ingleses e "prever" a vitória do espírito heróico dos alemães: "confortismo", uma mistura do conformismo com a aspiração ao conforto burguês. Poucos anos atrás,
um guerrilheiro taleban se declarou certo da vitória final de seu
grupo em termos análogos: "Eles
gostam de Pepsi-Cola, enquanto
a gente gosta da morte".
Em suma, somos pequenos,
avaros, incapazes de grandes sacrifícios porque incapazes de
grandes causas.
Essas três idéias, apresentadas
sumariamente, valem como uma
amostra da paixão autocrítica da
cultura ocidental.
Pedi a alguns amigos que adivinhassem o autor da seguinte citação: "A civilização americana é
de uma natureza puramente mecanizada (...) Meus sentimentos
contra o americanismo são de
ódio e profunda repugnância". As
respostas foram variadas: de Bin
Laden a Jean Baudrillard, passando por Celso Amorim e Tarso
Genro. O verdadeiro autor da citação é Adolf Hitler.
Em geral, desconhecemos a história das trivialidades com as
quais alimentamos a crítica da
sociedade em que vivemos.
Ora, Ian Buruma e Avishai
Margalit acabam de publicar um
ensaio indispensável e seminal,
"Occidentalism, the West in the
Eyes of Its Enemies" (ocidentalismo, o Ocidente nos olhos de seus
inimigos), pela editora Penguin
(uma tradução seria bem-vinda).
Eles nomeiam "ocidentalismo"
o conjunto das idéias (sempre ocidentais em sua origem) que apresentam nossa cultura como detestável e desumana.
Os porta-vozes habituais dessa
visão crítica são uma estranha
tríade: os nostálgicos do mundo
tradicional que garantia seus privilégios, os que combatem a exploração de hoje e acabam lamentando um passado mais
opressor ainda e os intelectuais
"progressistas", que descobrem
com horror que, na sociedade
moderna, sua autoridade se perde e se confunde com as caretas
da sociedade do espetáculo.
Mas, sejam quais forem os porta-vozes do ocidentalismo, a contribuição essencial de Buruma e
Margalit é a seguinte: a visão negativa que o Ocidente tem de si
mesmo não é fruto da suposta nobreza de sua consciência crítica.
Essa visão tem uma história, nasceu numa conjuntura específica:
a reação do romantismo alemão
contra as idéias da Revolução
Francesa, contra o Iluminismo e
contra o imperialismo modernizador de Napoleão.
O ocidentalismo é uma ideologia de resistência nacional, concebida na "época dos impérios".
Aperfeiçoado de Herder a Sombart, de Heidegger ao nazismo,
ele se instalou na cultura ocidental, realizando o sonho de toda
ideologia, ou seja, conseguindo
que sua origem fosse esquecida,
de forma a aparecer como uma
maneira "natural" de pensar.
Nota: Buruma e Margalit não citam "O Orientalismo", de Edward Said, mas seu livro implica
uma crítica radical das teses de
Said. Voltarei ao assunto.
@ - ccalligari@uol.com.br
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