São Paulo, sexta-feira, 02 de junho de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

Poetas e objetos poéticos

Chamava sua obra-prima de "Poema Enterrado", pois não pensava em publicá-lo

EM CRÔNICA de ontem, na pág. 2, lembrei o amigo, que por sinal era meu xará, cuja mania (ou missão na face da Terra) era botar um ovo. Não se tratava de um louco, embora tenha ido parar num hospício em Jacarepaguá. Era poeta, um poeta concreto nos dois sentidos: vivia a poesia concretamente e entrara na onda da poesia concreta dos anos 50.
Seu tema principal era o ovo. Fazia belos poemas à sua maneira, admirava as galinhas que, além de botar ovo e servir de base para as canjas dos enfermos, eram que nem aquele personagem que fazia prosa sem saber: faziam poesia sem saber.
Numa noite de pifão, subiu em cima do capô de um carro estacionado na Cinelândia e começou a cacarejar e a gritar: queria botar um ovo. Como disse na crônica acima citada, não sei se o conseguiu no hospício de Jacarepaguá -onde, por sinal, as galinhas são abundantes nos sítios ali existentes.

Círculo quadrado
Falarei agora de outro amigo (e poeta) que cismou em fazer um círculo quadrado. Seria o poema mais concreto da história universal. Não era maluco como o outro, mas tinha manias que a crítica especializada considerava geniais.
Fanático pela economia verbal, achando João Cabral palavroso demais, quase um parnasiano, ele suprimiu as palavras e até as letras de seus poemas, procurando expressar-se poeticamente, mas com outros recursos.
Cortava papéis, papelões, cartolinas e panos na busca incessante e tenaz de novas formas que fariam o que geralmente as palavras podem fazer: o objeto poético.
Depois de várias experiências (era um experimental por vocação e ofício), ele cismou de fazer um quadrado que fosse o menos quadrado possível e, se possível, se aproximasse de um círculo que fosse o menos círculo possível.
Tantas vezes tentou, tantas experiências buscou que, um dia, como Arquimedes tomando banho e descobrindo sem querer uma lei da física que até hoje não foi revogada, conseguiu um troço que era ou parecia um círculo quadrado.
Morava numa das últimas casas da antiga Ipanema, boa casa, com quintal, no qual o pai fizera um barraco destinado a guardar ferramentas, a tralha doméstica e superada da qual não queria se desfazer.
O chão era de terra e nela o poeta abriu um buraco fundo, parecido com um desses túneis que os presidiários fazem para fugir da prisão. Cavou 12 degraus na própria terra e no chão abriu um buraco pequeno e nele depositou a preciosidade.
Chamava sua obra-prima de "Poema Enterrado", pois não pensava publicá-lo nem mesmo divulgá-lo por aí, criaria um caso com os geômetras e os poetas tradicionais que ainda faziam poemas discursivos, poemas-piada tipo Bandeira, Drummond, Oswald de Andrade, que eram respeitados, mas não estavam com nada porque usavam palavras demais.
Tinha alguns amigos e admiradores, entre os quais, eu. Fui um bem-aventurado na tarde em que ele, após ter mostrado o poema aos amigos mais chegados, incluiu-me na lista dos afortunados que iriam usufruir a estesia (a palavra estava em moda) de sua obra capital, pedra angular da história, que abriria um assombroso caminho tanto para a poesia como para a geometria.
Fui a Ipanema, desci as escadas de terra, vi no chão o buraco que estava tampado com um grosso livro de poemas do Ezra Pound, em tradução do nosso comum amigo José Lino Grünewald.
Para falar a verdade, eu me sentia desconfortável. Não era íntimo dele, apenas seu admirador.
Além do mais, havia um cheiro, um sinistro bafio de túmulo em tudo aquilo. Mas reconheci que a obra de arte não foi feita para deleite de burgueses endinheirados. Ela é fruto de suor e angústia, as pérolas não foram feitas para os porcos, mas para os eleitos, e eu era um eleito, numa das raras, senão única ocasião em que desfrutei de tal condição.
E vi. Meninos, eu vi! Vi o "Poema Enterrado" e um pedaço de cartolina que, de acordo com o ângulo de visão, era às vezes um círculo, às vezes um quadrado, mas não simultaneamente.
Ia levantar o problema, mas o poeta leu a dúvida no meu rosto e me explicou: "A simultaneidade não importa porque o tempo poético não existe". Concordei com o poeta, saí daquele túmulo e sacudi a terra de minhas sandálias.


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