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CARLOS HEITOR CONY
Poetas e objetos poéticos
Chamava sua obra-prima de "Poema Enterrado", pois não pensava em publicá-lo
EM CRÔNICA de ontem, na pág.
2, lembrei o amigo, que por sinal era meu xará, cuja mania
(ou missão na face da Terra) era botar um ovo. Não se tratava de um
louco, embora tenha ido parar num
hospício em Jacarepaguá. Era poeta,
um poeta concreto nos dois sentidos: vivia a poesia concretamente e
entrara na onda da poesia concreta
dos anos 50.
Seu tema principal era o ovo. Fazia belos poemas à sua maneira, admirava as galinhas que, além de botar ovo e servir de base para as canjas
dos enfermos, eram que nem aquele
personagem que fazia prosa sem saber: faziam poesia sem saber.
Numa noite de pifão, subiu em cima do capô de um carro estacionado
na Cinelândia e começou a cacarejar
e a gritar: queria botar um ovo. Como disse na crônica acima citada,
não sei se o conseguiu no hospício de
Jacarepaguá -onde, por sinal, as galinhas são abundantes nos sítios ali
existentes.
Círculo quadrado
Falarei agora de outro amigo (e
poeta) que cismou em fazer um círculo quadrado. Seria o poema mais
concreto da história universal. Não
era maluco como o outro, mas tinha manias que a crítica especializada considerava geniais.
Fanático pela economia verbal,
achando João Cabral palavroso demais, quase um parnasiano, ele suprimiu as palavras e até as letras de
seus poemas, procurando expressar-se poeticamente, mas com outros recursos.
Cortava papéis, papelões, cartolinas e panos na busca incessante e
tenaz de novas formas que fariam o
que geralmente as palavras podem
fazer: o objeto poético.
Depois de várias experiências
(era um experimental por vocação
e ofício), ele cismou de fazer um
quadrado que fosse o menos quadrado possível e, se possível, se
aproximasse de um círculo que fosse o menos círculo possível.
Tantas vezes tentou, tantas experiências buscou que, um dia, como
Arquimedes tomando banho e descobrindo sem querer uma lei da física que até hoje não foi revogada,
conseguiu um troço que era ou parecia um círculo quadrado.
Morava numa das últimas casas
da antiga Ipanema, boa casa, com
quintal, no qual o pai fizera um barraco destinado a guardar ferramentas, a tralha doméstica e superada da qual não queria se desfazer.
O chão era de terra e nela o poeta
abriu um buraco fundo, parecido
com um desses túneis que os presidiários fazem para fugir da prisão.
Cavou 12 degraus na própria terra e
no chão abriu um buraco pequeno
e nele depositou a preciosidade.
Chamava sua obra-prima de
"Poema Enterrado", pois não pensava publicá-lo nem mesmo divulgá-lo por aí, criaria um caso com os
geômetras e os poetas tradicionais
que ainda faziam poemas discursivos, poemas-piada tipo Bandeira,
Drummond, Oswald de Andrade,
que eram respeitados, mas não estavam com nada porque usavam
palavras demais.
Tinha alguns amigos e admiradores, entre os quais, eu. Fui um bem-aventurado na tarde em que ele,
após ter mostrado o poema aos
amigos mais chegados, incluiu-me
na lista dos afortunados que iriam
usufruir a estesia (a palavra estava
em moda) de sua obra capital, pedra angular da história, que abriria
um assombroso caminho tanto para a poesia como para a geometria.
Fui a Ipanema, desci as escadas
de terra, vi no chão o buraco que estava tampado com um grosso livro
de poemas do Ezra Pound, em tradução do nosso comum amigo José
Lino Grünewald.
Para falar a verdade, eu me sentia
desconfortável. Não era íntimo dele, apenas seu admirador.
Além do mais, havia um cheiro,
um sinistro bafio de túmulo em tudo aquilo. Mas reconheci que a
obra de arte não foi feita para deleite de burgueses endinheirados. Ela
é fruto de suor e angústia, as pérolas não foram feitas para os porcos,
mas para os eleitos, e eu era um
eleito, numa das raras, senão única
ocasião em que desfrutei de tal
condição.
E vi. Meninos, eu vi! Vi o "Poema
Enterrado" e um pedaço de cartolina que, de acordo com o ângulo de
visão, era às vezes um círculo, às vezes um quadrado, mas não simultaneamente.
Ia levantar o problema, mas o
poeta leu a dúvida no meu rosto e
me explicou: "A simultaneidade
não importa porque o tempo poético não existe". Concordei com o
poeta, saí daquele túmulo e sacudi
a terra de minhas sandálias.
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