São Paulo, sábado, 02 de junho de 2007

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Geologia do amor

"O Passado", do argentino Alan Pauls, chega ao Brasil e terá versão de Babenco para o cinema; para autor, "não há experiência amorosa que não envolva dimensão de pesadelo"

Divulgação
Alan Pauls, autor de "O Passado", que em 2004 venceu o Prêmio Herralde na Espanha


FLÁVIA MARREIRO
DA REPORTAGEM LOCAL

"De todos os efeitos da separação, ao menos de todos aqueles de que tinha consciência, o único que verdadeiramente continuava a pegá-lo de surpresa era o fato de que o amor que ficara para trás, sinais de "outra vida", como freqüentemente gostava de chamá-la, tivesse sobrevivido à catástrofe."
O trecho é uma reflexão de Rímini, protagonista de "O Passado", do escritor argentino Alan Pauls. É uma entre as dezenas de vezes, nas quase 500 páginas do romance, em que o personagem, espantado, deduz sua teoria do amor: não há passado nem "experiência amorosa que não envolva uma dimensão de pesadelo". O tempo, Rímini concluirá, são solos sentimentais pantanosos, sujeitos a terremotos e deslizamentos que vão trazendo-lhe de volta Sofía, sua namorada de adolescência, depois sua mulher, e, depois de 12 anos, sua EX, com maiúsculas.
O livro chega ao país, pela Cosacnaify (478 págs.; R$ 55), quatro anos após ganhar o prestigioso Prêmio Herralde, da editora espanhola Anagrama -e quase simultaneamente ao lançamento de sua versão para o cinema, dirigida por Hector Babenco, que deve estrear em outubro. (Do filme, Pauls fala pouco.
Diz: "Vi no ano passado uma versão muito crua -e me parece que detectei nele um lado Polanski muito em sincronia com a dimensão cômica e de pesadelo do romance".)
Trata-se da principal obra do escritor argentino de 48 anos, também crítico literário e cinematográfico, definido como "um dos melhores escritores latinos vivos" pelo chileno Roberto Bolaño, morto em 2003. A seguir, Pauls, que vai à Festa Literária Internacional de Parati em julho, expõe sua profissão de fé na literatura e no amor, em conversa por e-mail.
 

FOLHA - Após três anos, voltam a lhe falar de "O Passado". Mudou sua forma de vê-lo? Já é possível ver sua principal obra à distância?
ALAN PAULS -
Me afasto e me acerco do romance todo o tempo, porque "O Passado" -como insinua o livro- é por definição o que nunca termina de passar. Mas agora posso ver com certa claridade que "O Passado" é um romance que crê no que narra (e não tem medo nem pudor e vai fundo nisso) e que crê na literatura como experiência singular. Um livro crente numa época de ironia e incredulidades: aí, creio, está uma de suas potências ou ao menos uma de suas originalidades.

FOLHA - Você define o amor de Rímini e Sofía como amor-terror, enfermidade. Não há outro?
PAULS -
Não, não há outro, e essa é um pouco a tese do livro. Não há experiência amorosa que não envolva uma dimensão de pesadelo. O amor é o sinistro por excelência: o menor contratempo, a trivialidade mais acidental pode transformar o idílio mais sólido em pesadelo.

FOLHA - No livro, Sofía funda a sociedade Mulheres que Amam Demais, tão oposta a grupos reais de auto-ajuda que parece paródia mordaz. O que o interessou no tema?
PAULS -
Me interessava o devir estranhamente militante que adquirem no mundo contemporâneo certos particularismos (desde a condição de não-fumantes até a anorexia, passando pelos canhotos, os sadomasoquistas ou os insones) que há alguns anos só consideraríamos como costumes ou idiossincrasias mais ou menos privados. "Minhas" mulheres que amam demais não têm muito a ver com as reais. Não tinha intenções paródicas. As "minhas" não se arrependem do excesso de amor, são militantes. O que me interessa em Sofía é a possibilidade de converter o amor em Amor, ou seja: em uma causa. Me interessam os neofanatismos que proliferam no mundo contemporâneo, e creio que o amor se presta muito bem a esse tipo de intensificações. O amor é uma das poucas experiências humanas que ainda representam um Todo.

FOLHA - Há no livro várias referências psicanalíticas. É um livro de um crítico estudioso de Barthes e Freud e que fez anos de análise?
PAULS -
Sou anacrônico: ainda me interesso por psicanálise, sim. Me interessam seus conceitos, seus dispositivos, suas intrigas e "narrativas". Talvez não tenha o efeito de autoridade que tinha há dez ou 15 anos, mas o que perdeu em autoridade ganhou em capacidade de suscitar ficções. Leio casos clínicos de Freud como se fossem relatos (enquanto Freud lia os relatos como casos clínicos). Uma expressão como "retorno do recalcado" é para mim menos a descrição de um fenômeno psíquico e mais um ponto de partida de um drama fascinante. "O Passado" pode ser lido como a execução de um programa de retorno do recalcado.

FOLHA - Como se relacionam o crítico e o escritor? Narrar e, por dedução, desenhar as teorias foi a saída?
PAULS -
Tenho com a teoria e a reflexão sobre a literatura a mesma relação instrumental, ao mesmo tempo culta e arbitrária, fundada e selvagem, que tenho com a psicanálise. Fui crítico; agora me penso mais como ensaísta, alguém que pensa os problemas e que os desenvolve a partir de uma perspectiva pessoal, ao mesmo tempo íntima e cultural, numa série de registros de escritura -a análise, a evocação autobiográfica, o collage- que modulam variações do mesmo tema.

FOLHA - A crítica espanhola Mercedes Serna faz uma ponte entre a teoria do amor exposta em "O Passado" e "O Jogo da Amarelinha", de Cortázar. Que acha da comparação?
PAULS -
Não vejo muitos pontos em comum entre os livros, embora Mercedes Serna não tenha sido a única a acreditar que os havia detectado. Cortázar sempre foi demasiado surrealista, demasiado "bretoniano" para meu gosto: entre Oliveira e Maga há uma espécie de paixão lúdica. Entre Rímini e Sofía não há nada que se pareça a um "amour fou". Há uma espécie de amor geológico, denso, feito de camadas e camadas sentimentais. Cortázar queria ser moderno a todo custo; eu me sinto muito cômodo no século 19 de Stendhal.


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