São Paulo, sábado, 02 de junho de 2007

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Crítica/romance

Autor angolano traça um panorama complexo de África nômade e onírica

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

No conto "A Morte e a Bússola", de Jorge Luis Borges, um investigador de polícia sonhador e ingênuo diz ao outro, pragmático e experiente, que, se a vida não tem a menor obrigação de ser interessante, as hipóteses ao menos devem sê-lo.
No último livro de José Eduardo Agualusa, "As Mulheres do Meu Pai", em que se narra uma viagem supostamente verídica em busca do passado de um pai já falecido, ambas, a verdade e a imaginação superam-se na potência de espanto.
A própria África, território dessa viagem para dentro e para o fundo do mundo, surge como um continente absurdo e onírico, onde a realidade é mais assombrosa que o sonho.
Uma menina anã que vive com uma galinha que pensa que é um cachorro, em Luanda; uma saxofonista feminista, em Durban; o cantor de uma banda de rock chamada Os Inesquecíveis, em Benguela; um funcionário público de 84 anos que come sereias, em Quelimane; uma bailarina que dança solitária e nua na ilha de Moçambique. É uma África, ou melhor, são muitas Áfricas, e todas bem diferentes daquela que estamos habituados a imaginar.
Nada de festas, batuques, sujeira e miséria. Personagens complexas e idiossincráticas errando (nos dois sentidos da palavra) e vivendo em lugares igualmente misteriosos. E a idéia que vai se formando de que a África é um lugar completamente externo e ao mesmo tempo interno a nós, brasileiros, e certamente muito mais aos portugueses.
É um território de exílio -que não queremos conhecer, mas que está profundamente arraigado em nossas vidas. Um lugar tão outro que chega a ser estrangeiro até para um dos protagonistas do romance, um português negro que se recusa a aceitar sua origem africana.
Brasileiros e portugueses, brancos de alma negra ou mesmo negros de alma negra, o fato é que a aceitação dessa alma sempre oscila entre a culpa, a condescendência e o esquecimento. Quem é e onde está esse negro que habita em nós?
Uma pergunta solta no romance: "Afinal, em que consiste um preto?", cai como uma martelada em nossa cabeça politicamente correta ou constrangedoramente paternalista. "O paternalismo é o racismo elegante dos covardes", diz também um dos personagens.
O que fazer? Como conhecer de verdade esse mundo negro e cheio de luz, que Agualusa transforma num espaço de que tanto mais gostamos quanto mais desconhecemos?
Laurentina, a protagonista, sai viajando pela África, em busca das mulheres de seu pai, Faustino Manso, um contrabaixista famoso nas décadas de 50 e 60 e mulherengo irremediável. Ao longo da viagem, ela vai descobrindo os sentidos de suas escolhas amorosas, profissionais e familiares, ao mesmo tempo em que descobre que aquele não é verdadeiramente o seu pai. E não estamos nós, sempre, buscando um pai e um passado que, quando e se encontrado, se revela completamente diferente daquele que buscávamos?
Mas o que mais importa nessa busca não são os segredos e as descobertas, e sim o próprio ato de buscar. Seguindo uma pergunta colocada no início do livro: "De quantas mentiras se faz uma verdade?", descobre-se que a verdade, quando revelada, pode ser muito mais desinteressante do que as mentiras que se criam sobre ela e, como diz o romance, "nada é tão verdadeiro que não mereça ser inventado".


AS MULHERES DO MEU PAI
Autor:
José Eduardo Agualusa
Editora: Língua Geral
Quanto: R$ 34 (550 págs.)
Avaliação: ótimo


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