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Crítica/romance
Autor angolano traça um panorama complexo de África nômade e onírica
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
No conto "A Morte e a
Bússola", de Jorge
Luis Borges, um investigador de polícia sonhador e
ingênuo diz ao outro, pragmático e experiente, que, se a vida
não tem a menor obrigação de
ser interessante, as hipóteses
ao menos devem sê-lo.
No último livro de José
Eduardo Agualusa, "As Mulheres do Meu Pai", em que se narra uma viagem supostamente
verídica em busca do passado
de um pai já falecido, ambas, a
verdade e a imaginação superam-se na potência de espanto.
A própria África, território
dessa viagem para dentro e para o fundo do mundo, surge como um continente absurdo e
onírico, onde a realidade é mais
assombrosa que o sonho.
Uma menina anã que vive
com uma galinha que pensa
que é um cachorro, em Luanda;
uma saxofonista feminista, em
Durban; o cantor de uma banda
de rock chamada Os Inesquecíveis, em Benguela; um funcionário público de 84 anos que
come sereias, em Quelimane;
uma bailarina que dança solitária e nua na ilha de Moçambique. É uma África, ou melhor,
são muitas Áfricas, e todas bem
diferentes daquela que estamos
habituados a imaginar.
Nada de festas, batuques, sujeira e miséria. Personagens
complexas e idiossincráticas
errando (nos dois sentidos da
palavra) e vivendo em lugares
igualmente misteriosos. E a
idéia que vai se formando de
que a África é um lugar completamente externo e ao mesmo
tempo interno a nós, brasileiros, e certamente muito mais
aos portugueses.
É um território de exílio
-que não queremos conhecer,
mas que está profundamente
arraigado em nossas vidas. Um
lugar tão outro que chega a ser
estrangeiro até para um dos
protagonistas do romance, um
português negro que se recusa
a aceitar sua origem africana.
Brasileiros e portugueses,
brancos de alma negra ou mesmo negros de alma negra, o fato
é que a aceitação dessa alma
sempre oscila entre a culpa, a
condescendência e o esquecimento. Quem é e onde está esse
negro que habita em nós?
Uma pergunta solta no romance: "Afinal, em que consiste um preto?", cai como uma
martelada em nossa cabeça politicamente correta ou constrangedoramente paternalista.
"O paternalismo é o racismo
elegante dos covardes", diz
também um dos personagens.
O que fazer? Como conhecer de
verdade esse mundo negro e
cheio de luz, que Agualusa
transforma num espaço de que
tanto mais gostamos quanto
mais desconhecemos?
Laurentina, a protagonista,
sai viajando pela África, em
busca das mulheres de seu pai,
Faustino Manso, um contrabaixista famoso nas décadas de
50 e 60 e mulherengo irremediável. Ao longo da viagem, ela
vai descobrindo os sentidos de
suas escolhas amorosas, profissionais e familiares, ao mesmo
tempo em que descobre que
aquele não é verdadeiramente
o seu pai. E não estamos nós,
sempre, buscando um pai e um
passado que, quando e se encontrado, se revela completamente diferente daquele que
buscávamos?
Mas o que mais importa nessa busca não são os segredos e
as descobertas, e sim o próprio
ato de buscar. Seguindo uma
pergunta colocada no início do
livro: "De quantas mentiras se
faz uma verdade?", descobre-se
que a verdade, quando revelada, pode ser muito mais desinteressante do que as mentiras
que se criam sobre ela e, como
diz o romance, "nada é tão verdadeiro que não mereça ser inventado".
AS MULHERES DO MEU PAI
Autor: José Eduardo Agualusa
Editora: Língua Geral
Quanto: R$ 34 (550 págs.)
Avaliação: ótimo
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