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Crítica/narrativas
Edições trazem erotismo em dois tempos
Jurista renomado do século 17 e funcionária do Exército britânico escreveram marcos da literatura erótica sob pseudônimo
ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Trezentos anos separam
dois marcos do erotismo literário europeu
que acabam de ser lançados no
país. Propor uma aproximação
entre eles é tarefa tão arriscada
quanto tentadora. O mais antigo, publicado em meados do século 17, foi escrito por Nicolas
Chorier, embora sua autoria seja atribuída a uma mulher já no
título: "Os Segredos do Amor e
de Vênus de Luisa Sigea". No
mais recente, datado de 1966,
ocorre algo diverso: a voz feminina que conduz o romance
"Gordon" coincide com a assinatura de Edith Templeton,
compondo uma narrativa de
inspiração confessadamente
autobiográfica.
Não é pequena a distância
entre os autores. Advogado de
formação e historiador por vocação, Chorier foi um jurista
erudito que ocupava posição de
destaque na corte francesa do
Seiscentos. Já Templeton, nascida em Praga em 1916 e residindo hoje na costa italiana,
passou a maior parte da vida no
Reino Unido, onde conciliava a
atividade literária com a de intérprete do Exército britânico.
Entre tantas diferenças, porém, destacam-se afinidades
significativas. Para ficar só nos
livros em questão, basta lembrar que ambos foram publicados sob pseudônimo, evidenciando um mesmo desejo de
anonimato, a prolongar uma
das mais antigas tradições da literatura erótica.
Romances perseguidos
"Gordon" foi lançado com a
assinatura de Louise Walbrook, e logo proibido no Reino
Unido e na Alemanha sob acusação de imoralidade. A saga da
personagem que se apaixona
por um psicanalista, abandonando-se a uma aventura amorosa marcada pela submissão
sexual, reeditou o escândalo de
romances como "História de
O" e "Emmanuelle", perseguidos na década anterior. Por certo, essas interdições decorriam
não só do veto moral, mas também da censura feminista ao
polêmico tema do masoquismo
feminino, o que obrigou Templeton a se esconder por trás de
um pseudônimo até 2002.
No caso de "Os Segredos do
Amor e de Vênus", a verdadeira
assinatura só veio a público depois da morte do autor. Por temer que os escritos obscenos
pudessem abalar sua reputação, Chorier apresentava o livro como a tradução latina, realizada por um filólogo holandês, de obra erótica criada pela
poeta espanhola Luisa Sigea.
Uma fraude como essa, além de
preservar a posição social do
magistrado, por certo também
divertia o humanista, que se deleitava em compartilhar textos
clandestinos com uma reservada elite intelectual.
Herdeiro de Aretino -o mais
famoso dos poetas renascentistas dedicados à tarefa de "expor
a coisa em si"-, o escritor francês adotou a forma do diálogo
licencioso entre mulheres que,
concebida pelo italiano, fixou o
modelo da moderna ficção erótica. Foi em torno desse modelo que se desenvolveu a vigorosa literatura libertina do Antigo
Regime francês, caracterizada
por um tom particular de dizer
a obscenidade. Ao apresentar
uma conversa picante entre
mulheres, cuja liberdade vocabular é proporcional à alegria
da nomeação, esses diálogos
realizam uma celebração ardente e maliciosa dos prazeres
da carne.
Ora, "Gordon" pertence a outra linhagem do erotismo literário, mobilizando tópicos bem
mais próximos do que poderíamos chamar de "inconsciente
sexual". Linhagem que dialoga
com as descobertas da psicanálise, à qual pertencem obras como "História do Olho", de
Georges Bataille, ou "Trópico
de Câncer", de Henry Miller.
Se, do ponto de vista formal, esses textos pouco têm em comum, o que permite agrupá-los
também é um certo tom -um
tanto sombrio, no caso, e por
vezes beirando o trágico.
Sexo e morte
No confronto entre os dois livros, o que salta aos olhos é justamente a passagem de uma libertinagem alegre para uma sexualidade soturna. Ao tom radiante de Nicolas Chorier -que
esboça uma utopia do gozo, reconciliando o verbo e a carne-,
se contrapõe o tom grave de
Edith Templeton, a traduzir
um irremediável pacto entre o
sexo e a morte.
Sinal dos tempos, talvez. Banida da cena simbólica ao longo
do século 20, e banalizada nas
cantilenas da indústria cultural, a exaltação de um Eros feliz
já não encontra espaço na paisagem sensível do mundo contemporâneo. Resta saber se,
pelo menos secretamente, ela
vem resistindo ao silêncio.
ELIANE ROBERT MORAES é professora de estética e literatura na PUC-SP e no Centro Universitário Senac-SP. Publicou, entre outros livros,
"O Corpo Impossível" (Iluminuras/Fapesp) e
"Lições de Sade -Ensaios sobre a Imaginação Libertina" (Iluminuras).
GORDON
Autor: Edith Templeton
Tradução: Alyda Christina Sauer
Editora: Rocco
Quanto: R$ 45 (248 págs.)
Avaliação: bom
OS SEGREDOS DO AMOR E DE VÊNUS DE LUISA SIGEA
Autor: Nicolas Chorier
Tradução: José Manoel Bertolote
Editora: Degustar
Quanto: R$ 49 (256 págs.)
Avaliação: ótimo
Leia trecho de "Os Segredos do Amor e de Vênus de Luisa Sigea"
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