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Crítica/reportagem
Célebre crime francês é base de livro-reportagem perturbador
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Depois de matar sua mulher, Florence, com
um rolo de macarrão
(ou "rolo de abrir massa", como
diz o tradutor), Jean-Claude
Romand desceu para a sala de
estar. Era um sábado de manhã,
11 de janeiro de 1993. Seus dois
filhos, Antoine e Caroline, tinham acabado de acordar.
"Ele pôs a fita dos "Três Porquinhos" no aparelho de videocassete, preparou tigelas de leite com achocolatado. Os filhos
se sentaram no sofá para ver o
desenho animado e ele se sentou entre os dois."
É o que registra o escritor e
roteirista Emanuel Carrère,
neste livro-reportagem que,
com algum exagero, foi comparado ao clássico "A Sangue
Frio", de Truman Capote.
"Eu sabia", declarou Romand
em seu julgamento, "que depois de matar Florence, também ia matar Antoine e Caroline, e que aquele momento,
diante da televisão, era o último
que passávamos juntos. Fiz festinha neles. Devo lhes ter dito
palavras de ternura, como "eu
amo vocês". Isso eu fazia sempre, e eles respondiam freqüentemente com desenhos".
Matou-os com uma carabina
calibre 22. Saiu de casa, verificou a caixa do correio, e dirigiu-se a uma cidade próxima, onde
moravam seus pais. Romand
assassinou-os também. Depois
de tentar matar outra pessoa,
voltou para casa e ficou assistindo televisão, tendo tido o
cuidado de rebobinar a fita dos
"Três Porquinhos". Tentou em
seguida suicidar-se, ateando fogo à casa. Foi salvo pelos bombeiros.
A frieza de seu comportamento não é o aspecto mais
inacreditável da história de
Jean-Claude Romand. Durante
18 anos, ele enganou toda a família e seus amigos: dizia-se
médico, com um importante
emprego na Organização Mundial da Saúde, em Genebra.
Na verdade, desistiu de fazer
os exames finais no segundo
ano do curso de medicina, sem
que seus colegas se dessem
conta do fato; continuou a freqüentar as aulas, passou o período de residência (o tradutor
escreve "internato") em um
hospital distante e foi mantendo as aparências o quanto pôde,
até que a farsa começasse a desabar.
Vivendo num mundo de fantasias e às voltas com crescentes problemas financeiros, Madame Bovary decidiu simplesmente suicidar-se. Se a personagem do romance de Flaubert
fosse homem, talvez fizesse como Jean-Claude Romand, e assassinasse toda a família.
O autor de "O Adversário",
infelizmente, não é Flaubert, e
perturba um bocado a narrativa com intervenções de gosto
duvidoso. Carrère quer "penetrar" na alma do assassino, tentando reproduzir frases que ele
supostamente dizia a si mesmo
a cada momento decisivo de
sua existência.
A restrição que se possa fazer
ao livro, do ponto de vista literário, não diminui entretanto o
interesse escabroso dos fatos
relatados e da psicologia, em última análise indevassável, do
protagonista.
Uma das pessoas presentes
ao julgamento dá, talvez, a última palavra: "Acredita-se que
temos um homem diante de
nós, mas na verdade não se trata mais de um homem, há muito tempo esse cara não é mais
um homem. É como um buraco
negro". Este livro perturbador
dimensiona-o com eficiência.
O ADVERSÁRIO
Autor: Emmanuel Carrère
Tradução: Marcos de Castro
Editora: Record
Quanto: R$ 30 (208 págs.)
Avaliação: bom
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