São Paulo, sábado, 02 de junho de 2007

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Crítica/reportagem

Célebre crime francês é base de livro-reportagem perturbador

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Depois de matar sua mulher, Florence, com um rolo de macarrão (ou "rolo de abrir massa", como diz o tradutor), Jean-Claude Romand desceu para a sala de estar. Era um sábado de manhã, 11 de janeiro de 1993. Seus dois filhos, Antoine e Caroline, tinham acabado de acordar.
"Ele pôs a fita dos "Três Porquinhos" no aparelho de videocassete, preparou tigelas de leite com achocolatado. Os filhos se sentaram no sofá para ver o desenho animado e ele se sentou entre os dois."
É o que registra o escritor e roteirista Emanuel Carrère, neste livro-reportagem que, com algum exagero, foi comparado ao clássico "A Sangue Frio", de Truman Capote.
"Eu sabia", declarou Romand em seu julgamento, "que depois de matar Florence, também ia matar Antoine e Caroline, e que aquele momento, diante da televisão, era o último que passávamos juntos. Fiz festinha neles. Devo lhes ter dito palavras de ternura, como "eu amo vocês". Isso eu fazia sempre, e eles respondiam freqüentemente com desenhos".
Matou-os com uma carabina calibre 22. Saiu de casa, verificou a caixa do correio, e dirigiu-se a uma cidade próxima, onde moravam seus pais. Romand assassinou-os também. Depois de tentar matar outra pessoa, voltou para casa e ficou assistindo televisão, tendo tido o cuidado de rebobinar a fita dos "Três Porquinhos". Tentou em seguida suicidar-se, ateando fogo à casa. Foi salvo pelos bombeiros.
A frieza de seu comportamento não é o aspecto mais inacreditável da história de Jean-Claude Romand. Durante 18 anos, ele enganou toda a família e seus amigos: dizia-se médico, com um importante emprego na Organização Mundial da Saúde, em Genebra.
Na verdade, desistiu de fazer os exames finais no segundo ano do curso de medicina, sem que seus colegas se dessem conta do fato; continuou a freqüentar as aulas, passou o período de residência (o tradutor escreve "internato") em um hospital distante e foi mantendo as aparências o quanto pôde, até que a farsa começasse a desabar.
Vivendo num mundo de fantasias e às voltas com crescentes problemas financeiros, Madame Bovary decidiu simplesmente suicidar-se. Se a personagem do romance de Flaubert fosse homem, talvez fizesse como Jean-Claude Romand, e assassinasse toda a família. O autor de "O Adversário", infelizmente, não é Flaubert, e perturba um bocado a narrativa com intervenções de gosto duvidoso. Carrère quer "penetrar" na alma do assassino, tentando reproduzir frases que ele supostamente dizia a si mesmo a cada momento decisivo de sua existência.
A restrição que se possa fazer ao livro, do ponto de vista literário, não diminui entretanto o interesse escabroso dos fatos relatados e da psicologia, em última análise indevassável, do protagonista.
Uma das pessoas presentes ao julgamento dá, talvez, a última palavra: "Acredita-se que temos um homem diante de nós, mas na verdade não se trata mais de um homem, há muito tempo esse cara não é mais um homem. É como um buraco negro". Este livro perturbador dimensiona-o com eficiência.


O ADVERSÁRIO
Autor:
Emmanuel Carrère
Tradução: Marcos de Castro
Editora: Record
Quanto: R$ 30 (208 págs.)
Avaliação: bom
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