São Paulo, sábado, 02 de junho de 2007

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ANTONIO CICERO

Poesia e filosofia

Assim são os poemas: objetos de palavras, com seus sentidos, sons, referentes, ritmos, ecos

EXISTE, ENTRE muitos ensaístas e alguns poetas contemporâneos, uma vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra. Tentarei mostrar algumas das razões pelas quais considero isso um erro, tanto para a poesia, quanto para a filosofia.
Um poema quer, em primeiro lugar, ser uma obra como qualquer outra obra de arte. Pensemos num dos quadros em que Rembrandt retrata um velho. O velho é um dos elementos do quadro. Não podemos mais saber se o retrato lhe é fiel; não sabemos sequer se esse velho realmente existiu.
Tudo somado, o que realmente conta é o que Rembrandt fez, não só com o velho, mas com os demais objetos retratados, e com as luzes, as sombras, as cores, as linhas, os planos, os volumes etc. O quadro solicitará de nós a imaginação, a memória, o intelecto, a emoção, a cultura, a sensibilidade, talvez até o humor. Todas essas coisas brincarão umas com as outras no nosso espírito. No final, o quadro não é sobre o velho, embora o velho faça parte de tudo o que o quadro é.
No fundo, não é o quadro que é sobre coisa alguma: ao contrário, o quadro é aquilo sobre o qual nós pensaremos e falaremos. Longe de existir para falar sobre um objeto, o quadro existe para ser um objeto sobre o qual e a partir do qual nós pensaremos e falaremos.
Pois bem, assim são os poemas: objetos de palavras, com todos os seus sentidos, seus referentes, seus sons, seus ritmos, suas sugestões, seus ecos. À primeira vista, eles nos falam, por exemplo, sobre uma pedra que havia no meio do caminho. Mas eles não são, no fundo, feitos para falar sobre pedras ou sobre coisa alguma. Ao contrário: como os quadros, eles são feitos para que nós pensemos sobre eles, e para que pensemos a partir deles com todas as nossas faculdades, e até com nossos corpos.
Nada mais longe disso do que a filosofia. Se o poema não quer ser um pensamento sobre objeto algum, mas quer ser um objeto do pensamento, a filosofia quer ser o pensamento da totalidade dos objetos, sem ser objeto de pensamento algum: a não ser do próprio pensamento filosófico, isto é, da filosofia mesma.
Enquanto o valor do poema não é dado pelo que fale sobre coisa alguma, pois a sua função, enquanto poema, não é falar sobre coisa alguma, o valor do discurso filosófico está no que fala sobre as coisas, mesmo quando a coisa de que fala seja a própria filosofia.
Enquanto um poema, sendo um objeto, não pode ser dito em outras palavras sem passar a ser outro objeto, isto é, outro poema, aquilo que um artigo de filosofia diz pode perfeitamente ser expresso em outras palavras: tanto assim, que falamos da filosofia de Sócrates, sem que suas palavras tenham sobrevivido.
Os discursos sobre um texto poético se multiplicam justamente porque o que ele diz não pode ser separado das palavras com que o diz, de modo que todas as demais palavras com as quais tentamos exprimi-lo ou explicá-lo resultam sempre insuficientes. Já os discursos -eles mesmos filosóficos- sobre um texto filosófico se multiplicam porque o que este tenciona dizer não é inteiramente expresso pelas palavras com que o diz, de modo que sempre pode e deve ser expresso e explicado melhor por outras palavras.
As grandes intuições filosóficas são poucas, e aqueles que as têm são grandes pensadores. São essas intuições que procuramos capturar quando voltamos aos textos originais e primários, ainda que textos posteriores e secundários já os tenham explicado melhor, no todo ou em alguns dos seus aspectos. É que não voltamos àqueles textos como a um poema que sabemos ser insubstituível e do qual cada uma das nossas leituras é sempre inadequada ou insuficiente, mas, ao contrário, voltamos a eles como a um texto que é ele mesmo inadequado ao que tenciona dizer, mas que, embora inadequado, é de todo modo o texto de um grande pensador, isto é, de alguém que supomos ter ido muito longe em pensamento, ainda mais longe do que aquilo que conseguiu exprimir por escrito e do que aquilo que, inadequadamente expresso por escrito, foi mais bem explicado por outros. Relemos tais textos como indicações, indícios ou sintomas de algo que eles mesmos não chegaram a exprimir adequadamente.
São essas algumas das razões pelas quais penso que esses dois pólos do pensamento, a poesia e a filosofia, não podem ser reduzidos um ao outro.


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