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ANTONIO CICERO
Poesia e filosofia
Assim são os poemas: objetos de palavras, com seus sentidos, sons, referentes, ritmos, ecos
EXISTE, ENTRE muitos ensaístas e alguns poetas contemporâneos, uma vontade de
apagar as fronteiras entre a poesia e
a filosofia, e de escrever textos que
sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra. Tentarei
mostrar algumas das razões pelas
quais considero isso um erro, tanto
para a poesia, quanto para a filosofia.
Um poema quer, em primeiro lugar, ser uma obra como qualquer outra obra de arte. Pensemos num dos
quadros em que Rembrandt retrata
um velho. O velho é um dos elementos do quadro. Não podemos mais
saber se o retrato lhe é fiel; não sabemos sequer se esse velho realmente
existiu.
Tudo somado, o que realmente
conta é o que Rembrandt fez, não só
com o velho, mas com os demais objetos retratados, e com as luzes, as
sombras, as cores, as linhas, os planos, os volumes etc. O quadro solicitará de nós a imaginação, a memória, o intelecto, a emoção, a cultura, a
sensibilidade, talvez até o humor.
Todas essas coisas brincarão umas
com as outras no nosso espírito. No
final, o quadro não é sobre o velho,
embora o velho faça parte de tudo o
que o quadro é.
No fundo, não é o quadro que é sobre coisa alguma: ao contrário, o
quadro é aquilo sobre o qual nós
pensaremos e falaremos. Longe de
existir para falar sobre um objeto, o
quadro existe para ser um objeto sobre o qual e a partir do qual nós pensaremos e falaremos.
Pois bem, assim são os poemas:
objetos de palavras, com todos os
seus sentidos, seus referentes, seus
sons, seus ritmos, suas sugestões,
seus ecos. À primeira vista, eles nos
falam, por exemplo, sobre uma pedra que havia no meio do caminho.
Mas eles não são, no fundo, feitos
para falar sobre pedras ou sobre coisa alguma. Ao contrário: como os
quadros, eles são feitos para que nós
pensemos sobre eles, e para que
pensemos a partir deles com todas
as nossas faculdades, e até com nossos corpos.
Nada mais longe disso do que a filosofia. Se o poema não quer ser um
pensamento sobre objeto algum,
mas quer ser um objeto do pensamento, a filosofia quer ser o pensamento da totalidade dos objetos,
sem ser objeto de pensamento algum: a não ser do próprio pensamento filosófico, isto é, da filosofia
mesma.
Enquanto o valor do poema não é
dado pelo que fale sobre coisa alguma, pois a sua função, enquanto
poema, não é falar sobre coisa alguma, o valor do discurso filosófico está no que fala sobre as coisas, mesmo
quando a coisa de que fala seja a própria filosofia.
Enquanto um poema, sendo um
objeto, não pode ser dito em outras
palavras sem passar a ser outro objeto, isto é, outro poema, aquilo que
um artigo de filosofia diz pode perfeitamente ser expresso em outras
palavras: tanto assim, que falamos
da filosofia de Sócrates, sem que
suas palavras tenham sobrevivido.
Os discursos sobre um texto poético se multiplicam justamente porque o que ele diz não pode ser separado das palavras com que o diz, de
modo que todas as demais palavras
com as quais tentamos exprimi-lo
ou explicá-lo resultam sempre insuficientes. Já os discursos -eles mesmos filosóficos- sobre um texto filosófico se multiplicam porque o
que este tenciona dizer não é inteiramente expresso pelas palavras
com que o diz, de modo que sempre
pode e deve ser expresso e explicado
melhor por outras palavras.
As grandes intuições filosóficas
são poucas, e aqueles que as têm são
grandes pensadores. São essas intuições que procuramos capturar
quando voltamos aos textos originais e primários, ainda que textos
posteriores e secundários já os tenham explicado melhor, no todo ou
em alguns dos seus aspectos. É que
não voltamos àqueles textos como a
um poema que sabemos ser insubstituível e do qual cada uma das nossas leituras é sempre inadequada ou
insuficiente, mas, ao contrário, voltamos a eles como a um texto que é
ele mesmo inadequado ao que tenciona dizer, mas que, embora inadequado, é de todo modo o texto de um
grande pensador, isto é, de alguém
que supomos ter ido muito longe em
pensamento, ainda mais longe do
que aquilo que conseguiu exprimir
por escrito e do que aquilo que, inadequadamente expresso por escrito,
foi mais bem explicado por outros.
Relemos tais textos como indicações, indícios ou sintomas de algo
que eles mesmos não chegaram a
exprimir adequadamente.
São essas algumas das razões pelas
quais penso que esses dois pólos do
pensamento, a poesia e a filosofia,
não podem ser reduzidos um ao outro.
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