São Paulo, quarta-feira, 02 de junho de 2010

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MARCELO COELHO

Ler ou não ler


O jornal! Mas o que houve? Por que estou querendo usar óculos escuros para ver a Primeira Página?


EM MATÉRIA de decoração de interiores, até que acho bonita a iluminação indireta: abajures cor de âmbar, lâmpadas escondidas atrás do gesso, suavidade.
Gosto, mas não para mim. Em casa, preciso de muita luz. Quanto mais claro, melhor.
Talvez por tanto excesso, minha luta com eletricistas tem sido constante e sem vitória à vista. Lâmpadas estouram às dúzias lá em casa, e não houve quem solucionasse o problema.
Antes, prevaleciam umas luzinhas dicroicas, arrumadas "em linha" ou "em fase", não sei bem. Queimasse uma, queimavam todas. E eu não tinha coragem de chegar perto. Dizem que a mão corre o risco de carbonizar se tocar no bulbo, no soquete ou sabe-se lá onde mais.
Troquei pelas incandescentes: não resistem. Troquei de eletricista: veio um com ares de quem era formado em física, fez um mapa completo das instalações, mexeu em tudo e foi embora na hora da novela.
Quando entrei em casa, duas crianças e uma babá se encolhiam num canto da cozinha, aterrorizadas. Um ronco elétrico nascia das entranhas do apartamento; o cheiro de queimado, como o hálito de um dragão robótico, ia e vinha com impulsos regulares pelo corredor. O incêndio era iminente.
Aventurei-me, lança em riste e sapatos de borracha, até o covil do monstro. Ficava abaixo da pia do banheiro. Era o motor, ao que parece, de uma jacuzzi que eu nunca soube utilizar. Indesligável: convocado, o zelador nos deixou às escuras, e o eletricista formado em física desapareceu para sempre.
Vieram outros. Em casa, a fiação se renova a cada inverno; a tomada de alguns aquecedores já derreteu como betume, tenho uma coleção de lanternas imprestáveis e agora me encolho sob um valente abajur que já sobreviveu a tudo.
Fico debaixo dele, meu guarda-chuva branco na escuridão. E tento ler o jornal.
O jornal! Mas o que aconteceu com ele? Por que estou querendo usar óculos escuros para ver a Primeira Página? É a reforma gráfica da Folha. Comento prós e contras.
Como muitos leitores, estranho o corpo volumoso das manchetes. Lembra-me um colega de ginásio, chamado Itapira ou Paraná, não importa. Não era gordo, era quadrado. Cúbico, melhor dizendo; e implicava comigo. Eu fugia dele como de um jipe da Segunda Guerra.
Será que, com esse tipo de letra, os títulos ficaram "mais fáceis de ler"? Sinto minhas retinas recuarem diante de tamanha robustez. Vou aos textos, entretanto, e se tornaram mais confortáveis e arejados.
Esse contraste entre leveza e peso, poluição e claridade, não é acidental. Quando vi os primeiros modelos de página reformada, achei popular demais.
Meu medo, que não é de agora, resume-se ao de termos entrado num círculo vicioso. Como se tem menos tempo para ler jornal, diminui-se o tamanho dos textos, que então serão lidos em menos tempo, e logo se sente a necessidade de diminuí-los novamente.
Uma coisa desautoriza o meu raciocínio. Tenho passado mais tempo lendo o jornal. Tomo o exemplo da seção Folha Corrida. Serve para se dar "uma passada de olhos". Mas, em vez de me fazer abandonar o jornal, leva-me a ler mais as páginas de dentro.
Há textos que ficaram mais longos, ao contrário do que eu pensava. Um perfil do principal candidato à Presidência da Colômbia, por exemplo, ocupou uma página inteira -e pude lê-lo com prazer. E uma matéria aparentemente "popular", como a que saiu sobre Ana Hickmann neste domingo, traz conotações "époustouflantes" para o leitor sofisticado.
A tendência para reportagens mais completas e longas tem-se fortalecido: um caderno sobre racismo e futebol, na Folha, e um sobre a guerra mexicana do tráfico, no "Estado", mostram isso.
A pura notícia vai perdendo a velha casca seca, as manchetes saem do ramerrão da economia e da política (resisto a Poder e Mercado), e há mais análise e artigos, apesar das insuficiências de sempre. O alarde visual talvez tenha escondido essas mudanças, que vou entretanto percebendo no dia a dia.
Quanto ao brutalismo das letras, essa espécie de "bullying" das manchetes, espero me acostumar. Quem sabe até me acostumo com os artigos do Palocci. Nunca se sabe quando um colega pode nos ajudar. Talvez ele me indique um bom caseiro, e eu lhe passe o telefone dos eletricistas que conheço.

coelhofsp@uol.com.br


AMANHÃ NA ILUSTRADA
Contardo Calligaris




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