São Paulo, sexta-feira, 02 de julho de 2004

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"À MEIA-LUZ - SESSÃO DUPLA"

EUA e Inglaterra na disputa pelo noir

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Em plena Segunda Guerra Mundial, os bastidores das indústrias cinematográficas inglesa e americana se viram agitados por uma perigosa contenda comercial: às vésperas do lançamento do remake de "À Meia-Luz" (1944), os executivos da MGM armaram uma operação para comprar e destruir os negativos da versão original inglesa, realizada quatro anos antes.
A operação falhou, e a versão original sobreviveu para ser lançada hoje, em DVD de lado A e B, junto -mas como espécie de reverso da moeda- do remake hollywoodiano.
São ambas adaptações de "Gaslight", peça de Patrick Hamilton -o dramaturgo inglês que inspirou o Hitchcock de "Festim Diabólico"- publicada em 1938. Na Londres do final do século 19, uma jovem mulher vitoriana é torturada psicologicamente pelo marido arrivista.
O enredo não muda muito, mas os quatro anos de diferença entre as duas versões se multiplicam em razão da guerra: as limitadas profundidade e nuança psicológicas dos personagens da versão inglesa, um thriller psicológico de parcos recursos, estão mais próximas da era do primeiro cinema falado, dos filmes do princípio da década de 30.
A inocência e a unidimensionalidade desses personagens, o cinema do pós-guerra já não conhecerá. Os abismos da alma humana haviam sido devassados naqueles anos: o noir norte-americano dos anos 40 seria a primeira evidência de que o cinema falado se tornara psicologicamente mais complexo.
As teorias freudianas aportavam em Hollywood, trazidas na bagagem de cineastas europeus refugiados do nazismo. Prova disso é que a mulher vitoriana da versão americana (Ingrid Bergman, no papel que lhe valeu seu primeiro Oscar) segue à risca o retrato freudiano da histeria feminina. No remake, a psicologia dos personagens renasce vigorosa.
Se não fosse encampado pela MGM, "À Meia-Luz" talvez tivesse se tornado um autêntico noir, gênero cujos melhores frutos nasceram de produções modestas. Caso inversamente proporcional ao do longa-metragem original de Thorold Dickinson, que tendia a crescer se realizado como uma produção de primeira linha da indústria inglesa, se protagonizado, por exemplo, por Lawrence Olivier e dirigido por Hitchcock, ex-titulares do cinema britânico que filmaram, no mesmo ano, em Hollywood, "Rebecca, a Mulher Inesquecível", obra irmã de "À Meia-Luz".
Estúdio da elite hollywoodiana, a MGM sustentava um esquema de produção dos mais hierarquizados, com pouco espaço para a contribuição pessoal dos diretores (no caso, George Cukor). Sob os moldes da MGM, o thriller se faz drama psicológico para donas-de-casa de classe média americanas. E a riqueza cenográfica hollywoodiana se faz opulência vazia. Como diria Frank Capra, referindo-se ao padrão MGM, nem sempre os esquemas mais bem planejados resultam nos melhores filmes.


À Meia-Luz - Sessão Dupla
Gaslight
   
Direção: Thorold Dickinson
Produção: Inglaterra, 1940
Direção: George Cukor
Produção: EUA, 1944
Lançamento: Warner (pacote especial com os dois DVDs)



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