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FERNANDO GABEIRA
Um parto para sair do século 20
Você sabia que "Dom Casmurro" foi escrito por Machado de Assis? Essa pergunta toma quase toda a primeira página
do "Diário Oficial" extra, publicado por Lula. O objetivo da edição era apenas cancelar uma medida provisória e abrir a pauta
para que se aprovasse uma CPI
chapa-branca, proposta por Sandro Mabel, por José Janene e pela
bancada do PT.
O pior é que eu sabia que Machado escreveu "Dom Casmurro". Se for preciso, posso até depor
sobre isso na CPI deles. São coisas
da juventude, mas não posso fugir delas. Lembro-me de que o livro começa mais ou menos assim:
"Numa noite dessas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei um rapaz do bairro que
conhecia de vista e pelo chapéu".
Não tenho provas, mas posso
enfrentá-los assim mesmo. Na
verdade, enfrentá-los com humor
é necessário neste momento. Temos franqueado uma linha,
transposto uma tênue fronteira
no Congresso. Estamos nos insultando com alguma constância. Isso não é bom. Parece que alguns
deles querem arrastar também as
instituições ladeira abaixo, mas,
entre os acusadores, há excesso
também. Os insultos não ajudam
as investigações nem fortalecem a
defesa.
É preciso reencontrar a linha de
fronteira e isso não é fácil quando
as paixões e ressentimentos estão
muito acesos. A crise possibilita
algumas saídas. Uma delas é a de
afastar, talvez para sempre, a
idéia de que os fins justificam os
meios na política. Essa idéia supõe a democracia como uma simples tática -portanto despreza-a
no fundo.
Outra vereda importante diz
respeito às empresas estatais. Não
há sentido em loteá-las entre partidos políticos. É preciso deixar
que floresça uma burocracia
competente, impessoal. Isso, no
entanto, não é panacéia.
Competentes técnicos foram
cooptados pelos políticos. As denúncias sobre o desvio em Furnas
indicam que, dos R$ 3 milhões
mensais, quase 20%, R$ 500 mil,
ficavam com diretores da empresa.
Infelizmente, minha percepção
é a de que os desvios anunciados
até agora são apenas a ponta do
iceberg. Não é leviano afirmar
que existem investigações em várias áreas -grande parte das
quais ainda não emergiu. Há trabalho voltado para problemas na
Petrobras, há dois fundos de pensão em crise de acerto de contas,
há uma investigação sobre a verba especial do gabinete da Presidência e até esse AeroLula costuma ser citado nas conversas de
bastidores.
Tudo isso depende de confirmação e é a parte mais leve do processo. Existe uma mais pesada,
que diz respeito aos assassinatos
dos ex-prefeitos Celso Daniel, de
Santo André, e Toninho da Costa
Santos, de Campinas, ambos do
PT. São cadáveres no armário:
impossível não exumá-los, ainda
que seja para comprovar a inocência dos envolvidos.
Numa situação dessas, as explosões emocionais podem nos confortar momentaneamente, mas
não ajudam no delicado processo
de achar saídas para a crise: reconstituir o tecido da política, reconstituir o tecido do campo da
esquerda democrática e, finalmente, reconstituir uma aliança
que possa governar, decentemente, o Brasil.
O mais difícil de tudo será reconstruir um campo de esquerda.
A bancada de deputados do PT
jogou-se de corpo e alma na luta
por uma CPI chapa-branca, tornando-se cúmplice objetiva do assalto à máquina do Estado brasileiro. A própria idéia do socialismo chega a me assustar, como assusta a Václav Havel, o ex-presidente tcheco.
Ele aceita a idéia de solidariedade, de luta pela justiça social,
enfim de todos os conteúdos da
expressão socialismo, mas prefere
defendê-los sem o guarda-chuva
desse nome, dado ao desgaste que
sofreu no processo histórico de seu
país.
Caminhamos para uma situação semelhante no Brasil, agora
que nos desvencilhamos do passado ou, pelo menos, de uma de
suas patologias políticas (os fins
justificam os meios) e teremos de
buscar novos caminhos.
Aqueles que acham que a corrupção de esquerda precisa de um
tratamento mais sensível quase
sempre são aqueles que pedem tolerância para Fidel Castro e sua
repressão de esquerda. Estão enterrados no meu coração com o
século 20.
Edgar Morin escreveu um pequeno livro intitulado "Para Sair
do Século 20". O tema era também a interdisciplinaridade e outras observações que não cabem
aqui. Mas o Brasil está em via de
sair do século 20, o que terá feito
quando superar essa etapa, embora ainda tenhamos nas costas
algumas lições de casa do século
19 não realizadas, como o saneamento básico, uma reforma agrária diferente e tantos outros sintomas de atraso.
Mas as coisas não caminham de
forma harmônica. A crise atual,
por exemplo, é a primeira em que
a internet desempenha papel importante. As pessoas se informam,
discutem, multiplicam a mensagem dos meios convencionais. Só
isso me abre o horizonte para
aquele projeto do computador a
US$ 100. Quando defendi a quebra do monopólio dos telefones,
fui chamado de traidor por uma
parte da esquerda. Mas a aliança
com a ciência, sem ilusões, a
aproximação com a chamada
terceira cultura (cientistas que
explicam o mundo como escritores), aponta para um tipo de intervenção que renda mais frutos
do que ficar nesse interminável
bate-boca para demonstrar que
corrupção de esquerda e de direita não se diferenciam.
Nas democracias, ambas são
crime.
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